Aloysio Fonseca, 60, é professor de clínica médica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro há 30 anos. Desde que começou a lecionar na universidade, trabalha no Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), onde é chefe de enfermaria.
No dia 26 de janeiro, Fonseca recebeu a primeira dose da vacina contra a Covid-19. “Nós começamos seguindo o critério de vacinar só quem estivesse diretamente ligado às unidades Covid”, explica Fonseca.
Posteriormente, o Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho da Uerj (Dessaúde) seguiu as orientações do governo estadual e abriu a vacinação para os profissionais de saúde acima de 60 anos. Fonseca, que trabalha em enfermarias não destinadas à Covid-19, só recebeu a dose pelo critério de idade. Como as vacinas são escassas, outros médicos, igualmente expostos, não puderam ser vacinados porque não trabalham em leitos destinados à Covid-19.
“O problema é que isso, no Hupe, não vale. Todo mundo aqui está na linha de frente.”
Desde o começo da pandemia, o Hupe é um dos principais hospitais de referência para o tratamento de alta complexidade da Covid-19. De uma forma ou de outra, todos os profissionais do hospital acabam se envolvendo com pacientes infectados. Como exemplo, Fonseca relata um caso recente: “Um paciente chegou no Hupe e foi internado com insuficiência cardíaca descompensada. O quadro dele evoluiu bem. No terceiro dia, ele teve febre. Quando fizemos o teste, deu positivo para Covid. Nisso o paciente já ficou três, quatro dias na nossa enfermaria não Covid.”
Existe ainda um agravante: os profissionais que atendem em espaços não destinados à Covid têm menos equipamentos de proteção individual (EPI). “Ficamos mais expostos e com menos proteção”, resume Fonseca. Dos nove chefes de enfermaria, seis já tiveram a doença. Um deles chegou a ficar um mês no CTI. Além disso, se os pacientes com Covid-19 precisarem do acompanhamento de nefrologistas, cardiologistas, gastroenterologistas etc., esses profissionais também precisam entrar em ação e se expor ao vírus. Nenhum deles, com menos de 60 anos, pode ser vacinado. “O hospital recebeu pouquíssimas doses em face da relevância que tem. Foi um escárnio”, desabafa Fonseca.
Aepidemiologista Carla Domingues, especialista que dirigiu o Programa Nacional de Imunizações do Brasil de 2011 a 2019, criticou a forma como as vacinas foram distribuídas. “Com poucas vacinas, não faz sentido distribuir para todos os municípios se eles têm situações epidemiológicas diferentes”, diz. Na avaliação dela, se os imunizantes forem enviados prioritariamente para áreas mais afetadas, o impacto da vacinação na transmissão da doença será maior.
Mas essa estratégia tem um revés: o enfrentamento político. “É muito mais fácil dar um pouquinho de dose pra todo mundo e falar que começou nacionalmente do que explicar para a sociedade por que tem um grupo sendo vacinado antes e que não adianta sair de um município para o outro”, afirma Domingues. “Não existe comunicação do Ministério da Saúde para convencer a população de que a vacina do outro, neste momento, é a mais importante do que a minha.”
A falta de coordenação nacional é um agravante para a escassez de vacinas, provocada pela inépcia do governo federal. Até o mês passado, o Brasil contava com apenas 12 milhões de doses disponíveis, número insuficiente para cobrir todos os grupos que deveriam estar incluídos na primeira leva de vacinação.
Carla Domingues já enxerga problemas a longo prazo, caso o programa de vacinação não seja organizado agora. A especialista lembra que o Ministério da Saúde já deveria estar organizando a fila para outros grupos prioritários.
“Quando chegar ao grupo de comorbidade, como vamos nos organizar? Como as pessoas vão comprovar a comorbidade? Quem vai ter prioridade? São questões que deveriam estar sendo pensadas desde já e não há uma política nacional de definição de cadastramento prévio para saber exatamente quem vai ser vacinado e agilizar o processo de vacinação.” O Ministério da Saúde ainda não detalhou como fará essa organização.
Além da organização, é preciso ter vacina. Após pressão do Instituto Butantan, o governo decidiu na última sexta-feira (12) assinar o contrato de compra do segundo lote de vacinas da CoronaVac, com 54 milhões de doses. Mas no atual ritmo de vacinação, o país ainda pode demorar mais de três anos para imunizar toda a população. Entre os profissionais da linha de frente do Hupe, que já se arriscam desde o começo da pandemia, há pressa. “A vacinação acontece justamente para não perdermos mais gente”, desabafa Aloysio Fonseca.
Revista Piauí/Camille Lichotti
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