O que eu vou contar nestas próximas linhas não fará sentido para os leitores mais jovens, mas houve um tempo em que assistíamos televisão no meio da praça. Sim, todas as noites várias famílias, especialmente no interior do país, saiam das suas casas e iam até a praça central da cidade esperar o momento em que o funcionário da prefeitura destrancava uma caixa de madeira, de concreto ou de metal, colocada no topo de uma coluna, e ligava o aparelho que estava ali dentro.
As imagens trêmulas e chuviscadas enchiam os olhos curiosos para um sem número de pessoas que passavam a “conhecer” o mundo por meio daquele fantástico aparelho. E eu não estou falando de um tempo tão distante assim. No final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990 os aparelhos de televisão eram itens obrigatórios em qualquer praça do interior do país, instrumento de barganha política junto a um eleitorado alijado de outros bens educacionais e culturais.
Nessa fase, chamada por alguns estudiosos do tema de “fase do desenvolvimento tecnológico” (Sérgio Mattos) ou “fase da transição e da expansão internacional” (Dominique Wolton), a propriedade de aparelhos ainda era restrita às camadas mais abastadas, o que obrigava as famílias mais pobres, já bastantes seduzidas por essa nova tecnologia, a procurar lugares que dispunham destes aparelhos para assistir os seus programas favoritos, trazendo um pouco de alento a uma vida de dura.
Esse fenômeno levou rapidamente ao declínio os parcos equipamentos culturais das cidades do interior, como foi o caso dos cinemas. Lembro que na minha cidade, no interior do Maranhão, havia um cinema chamado “Cine Oriente” que, para sobreviver, passou a exibir filmes pornôs, o que não foi suficiente para sua sustentação, até porque não demorou muito a chegar à cidade as videolocadoras, onde os “cinéfilos” podiam alugar suas fitas para assistir no conforto dos seus lares.
Seja no meio de uma praça pública, seja na sala de casa, a televisão cumpriu um importante papel de sociabilização, mesmo que de forma mitigada. Isso porque, ao contrário do que acontecia na antiguidade, as praças não eram (como ainda não são) espaços de convivência pública ativa, no máximo um lugar para gastar o tempo, bater um papo e, para as pessoas em situação de rua, garantir um “abrigo seguro”, mesmo que de forma precária, por curtos espaços de tempo. Naqueles tempos, os aparelhos de TV nas praças reverteram um pouco dessa lógica.
Destaco essas coisas para dizer que a televisão se consolidou no Brasil no vácuo de uma cultura ativa de participação política e na ausência de políticas públicas efetivas de cultura. Só para se ter uma ideia, uma pesquisa realizada pelo IBGE mostrava que em 2018 a tv estava acessível a 97,2% dos moradores em domicílios particulares permanentes, ao mesmo tempo em que 32,2% da população morava em municípios sem museus, 30,9% sem teatro ou sala de espetáculo, 39,9% sem cinema. Imagine como era há 70 anos!
Isso quer dizer que, num país onde o acesso aos instrumentos culturais é realmente limitado, a televisão pode continuar a garantir sua hegemonia unilateral de informar, educar e entreter (especialmente em função da sua intensa concentração nas mãos de poucas famílias e grupos econômicos), mesmo com o crescimento exponencial da internet. Nesse sentido, em que pese haver uma aparente reconfiguração do papel da televisão, me parece não ser prudente subestimar o seu poder no que se refere ao estabelecimento de contornos e a mobilização de sentidos no que se refere a pautas diversas.
Assim, uma pesquisa realizada pelo Datafolha em março deste ano mostrou que as TVs são vistas pela maioria dos brasileiros (61%) como os meios mais confiáveis para divulgar informações sobre o novo coronavírus. Esse fato parece restituir à televisão um status conservado por esta durante muitos anos, mas que parecia abalado com a chegada e sedimentação das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), especialmente as redes sociais. Não é demais lembrar que pela primeira vez na história o Brasil viu se eleger como presidente da República um candidato com poucos segundos de propaganda eleitoral na tv.
Obviamente que não dá para afirmar que essa percepção, a de que a TV é o meio mais confiável para se adquirir informação, perdurará, mas certamente ela coloca em cheque uma mudança que se desenhava, onde os meios clássicos de comunicação (TV, rádio e jornal impresso) perdiam espaço para os novos veículos que vieram a reboque da internet. Só para se ter uma ideia, uma outra pesquisa realizada antes pela Câmara dos Deputados, em 2019, mostrava que 79% dos entrevistados diziam receber notícias sempre pela rede social.
Lembro mais vez a pesquisa realizada pelo IBGE que mostra que em 2018 a posse de aparelhos de tv de qualquer tipo era quase universalizada no Brasil, já que estava acessível a 97,2% dos moradores em domicílios particulares permanentes. Considerando os televisores de tela fina, essa proporção era menor (74,2%), embora tenha mostrado aumento na comparação com 2016, quando era acessível a 65,5% da população, fato que demonstra uma sólida disposição da população brasileira pelo uso desses equipamentos.
E, claro, não é demais também lembrar que quando falamos de televisão, não falamos de um modelo convencional de fazer ou de ver a televisão. Isso porque as novas tecnologias, ao invés de ameaçar, foram em grande medida assimiladas por aquela. Hoje, dizer que a “programação da TV chegas aos lares” não mais descreve com precisão a realidade atual, pois a TV também chega hoje ao transporte público, aos elevadores, aos ambientes de trabalho, às aeronaves em pleno voo, aos estádios de futebol e, principalmente, a televisão chega à palma da mão das pessoas, não só pelas ondas eletromagnéticas, mas também por serviço de streaming.
Ao contrário do que acontecia há alguns anos, as pessoas não precisam mais se programar para assistir aos seus programas preferidos, muito menos lotar as praças, o que garantia um certo controle do tempo e da vida das pessoas. Muito da programação das emissoras está hoje disponível no YouTube, Vimeo ou mesmo nos serviços de streaming, para os quais muitas empresas do ramo têm aderido (caso da Rede Globo, que inaugurou não faz muito tempo o Globo Play com o objetivo de disputar de perto com as grandes plataformas).
Hoje ao invés de comandar o tempo das pessoas, estas é que determinam não só o que será assistido, mas quando e onde isso irá acontecer. O que resta saber, portanto, é se isso significa de fato um ganho de autonomia real por parte dos “telespectadores”. Ao que parece, está se inaugurando no Brasil um novo tempo no campo da pesquisa sobre a televisão e sua inserção sociocultural nas camadas populares, aspecto que deverá/precisará ocupar um amplo campo de pesquisa nos próximos anos.
Estas pesquisas não podem e não devem ignorar, especialmente, a intensa concentração destes veículos nas mãos de poucas famílias e grupos econômicos, sob o risco da televisão no Brasil continuar centrada num modelo antidemocrático, antimediador, intransitivo, tendo como consequência direta a limitação crescente da participação da população nas instâncias públicas de decisão (a televisão é uma concessionária de serviço público), só que agora com o agravante da falsa sensação de que a comunicação se tornou mais democrática com as internet.
É uma pena que nos seus 70 anos, a televisão continue sendo um instrumento bastante paradoxal, pois se de um lado dissemina informação e conhecimento, de outro continua sob o domínio da grande burguesia. Como nos lembra Alfredo Bosi, no seu “Dialética da Colonização” (1992), não se deve esperar da cultura de massas e, menos ainda, da sua versão capitalista de indústria cultural, o que ela menos quer dar: lições de liberdade social e estímulos para a construção de um mundo que não esteja atrelado ao dinheiro e ao status.
Por outro lado, pondera Bosi, se a propaganda não consegue vender a quem não tem dinheiro, “ela acaba fazendo o que menos quer: dando imagens, espalhando palavras, desenvolvendo ritmos, que são incorporados ou re-incorporados pela generosa gratuidade do imaginário popular”. Ou seja, a indústria cultural em geral, e a televisão em particular, acabam, paradoxalmente, por permitir que as pessoas absorvam novos conhecimentos e vivências, configurando-se num verdadeiro processo dialético.
“O povo assimila, a seu modo, algumas imagens da televisão, alguns cantos e palavras do rádio, traduzindo os significantes no seu sistema de significados. Há um filtro, com rejeições maciças da matéria impertinente, e adaptações sensíveis da matéria assimilável”, diz Bosi, para quem “a exploração, o uso abusivo que a cultura de massa faz das manifestações populares, não foi ainda capaz de interromper para todo o sempre o dinamismo lento, mas seguro e poderoso da vida arcaico-popular”.
Eu lembro que a Constituição Federal de 1988 (artigo 220, inciso I) estabelece que a produção e a programação das emissoras de televisão (bem como as de rádio) deverão dar preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas (embora nem sempre estas finalidades se deem de forma independentes), o que enseja uma luta permanente em torno deste importante instrumento de comunicação, sobretudo se considerarmos este um importante elemento na luta de classes, um dos, se não o principal, instrumento intelectual, nos termos em que Gramsci colocava.
Isso porque, “o domínio do poder material determina o domínio do poder intelectual” (Marx e Engels. A Ideologia Alemã, 2001). Ou seja, nas sociedades capitalistas, não basta o domínio dos meios de produção material, mas especialmente dos meios de produção intelectual, dentre os quais se incluem diversas instituições da sociedade civil, como as escolas, as igrejas e, obviamente, a mídia. E é a conjugação entre os interesses de classe, com o domínio da televisão como um importante instrumento de sociabilização, que tem garantido a hegemonia burguesa.
Portanto, ver televisão na praça, em casa ou em qualquer outro lugar não é e nunca foi um ato tão despretensioso como parece ser. O que não quer dizer que sua importância possa ou deva ser negada, pois sua dinâmica, em que pese o reconhecimento do seu uso interessado pela classe dominante, está inscrita no cotidiano brasileiro, levando e trazendo, de norte ao sul do país, novos vocabulários, ritmos e modos de vida.
Que a televisão permaneça por muitos e muitos anos, mas que o seu atual modelo antidemocrático, antimediador e intransitivo tenha seus dias contados! Quem sabe com isso um dia voltemos para o meio da praça, não mais para assistir TV, mas para fazermos valer uma cultura de participação política realmente ativa e instruída, como uma democracia de fato merece.
Francisco de Paula Araújo é Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), bibliotecário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), editor-chefe da Agência Biblioo Publicações e Comunicação, além de advogado trabalhista.
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