O professor Moisés Almeida, Mestre em História do Brasil e professor Assistente da UPE Campus Petrolina e Facape, usou as redes sociais e fez uma dura crítica ao modelo adotado pela Prefeitura de Petrolina, para o carnaval deste ano.
"Infelizmente assistimos o povo dentro de um curral. Encurralado". Confiram o texto do professor Moises Almeida.
"Petrolina e o carnaval do Povo encurralado. Não sou desses foliões que participa de blocos e tem a tradição de não perder um dia de momo. Geralmente participo indo um ou dois dias, especialmente para rever amigos e amigas, e, apreciar a criatividade de nossa gente a partir de suas fantasias. Afinal, Carnaval é assim: “elemento constitutivo do modo de vida especificamente popular de uma nação, consistindo num conjunto de cerimônias, de rituais coletivos, pois na festa há sempre algum motivo de agregação dos participantes, que reafirmam laços sociais e aproximam os homens, traduzindo a cultura popular, a linguagem do povo e sua própria identidade” (LEITE; CAPONERO; PEREZ, 2010).
Tive a oportunidade de participar da festa em 2017 aqui em Petrolina, e me agradou muito a forma espontânea de seus participantes, mescladas em dois polos principais, muito próximos um do outro. Como já estou na minha quinta década de vida, apreciei bastante o polo da 21 de setembro. Marchinhas antigas, blocos, músicas de antigos carnavais, frevo e tudo muito tranquilo, sem qualquer expectativa de violência. Acertada decisão do poder público municipal que promoveu uma boa festa momesca.
“O carnaval é comumente definido como a festa da confraternização universal, a festa da democracia social e racial, que une e iguala a todos: brancos e pretos, ricos e pobres. Esta proposta universalidade da festa, capaz de destruir as diferenças e desigualdades culturais internas, de unificá-las e de promover a integração social, possibilitou sua conversão em símbolo da identidade nacional (ARAÚJO, 1996, p. 19).Nesse ano de 2018 fui novamente a folia de momo e me deparei com essas imagens que reproduzo nesse texto. São imagens de ruas fechadas com zinco, entrada parecendo caminho de curral, polo carnavalesco totalmente fechado. Que cena horrível, imagens não dignas de uma folia do povo.
“Apesar de que a metafísica social acredita que a folia e a alegria existem por si, em sim, como um fim em si mesmo. A cisão entre o real da exploração e a ludicidade de qualquer manifestação artística permanecem como estrutura da sociedade alienada. A alegria dos foliões parece estar desprendida da realidade real, do mundo das relações concretas. (MYKONIOS, 2011). Vi gente decepcionada com a forma de ser recebida no polo da 21 de setembro: duas entradas com proibição de porte de qualquer tipo de bebida. A praça, as ruas, os becos, privatizados em nome do mercado grotesco, que não tem escrúpulos e transforma a vontade popular, numa mera mercadoria assujeitada. “Transformar tudo em mercadoria não é simplesmente colocar preço em todas as coisas. O preço é apenas a expressão visível e material desse processo. A mercadoria se forma anteriormente ao preço, como produto de uma relação em que o tempo de exploração quantifica a medição do valor e cria a necessidade de uma mediação formal” (MYKONIOS, 2011).
Triste realidade encontrada por aqueles que acostumados a festa ao ar livre, tiveram que experimentar o circuito fechado, lógica que já se instalou no Brasil em outros lugares, desde algumas décadas e que é apropriada pelo poder público municipal como sendo a saída pela sua falta de estratégia em atrair recursos para fazer uma festa autenticamente popular. Essa lógica já faz parte do gerenciamento de Petrolina em suas festas juninas. Lembro que em 2012, fiz um artigo titulado “na seca, sem pão e no circo”, tecendo críticas ao montante de gastos com o São João em plena época de dificuldades com a falta de chuvas. Ainda assim, a lógica do mercado continuou e continua. Mesmo mudando de gestão municipal em 2017, a festa junina continua com os mesmos padrões, apesar da alegada economia de recursos.
Nesse sentido, Julio Lóssio e Miguel Coelho não se diferenciam quando planejam e executam “festas populares”. Essa mesma coesão de festa particular, onde recursos públicos se unem aos recursos privados, estamos também experimentando no Carnaval de 2018. “Em sua essência, o carnaval de rua brasileiro é uma festa que contrasta com a lógica capitalista de organização social. A ocupação dos espaços públicos, a mitigação de hierarquias, as iniciativas coletivas que organizam os blocos e as interações despretensiosas entre os foliões divergem da lógica do privado, dos empreendimentos individuais, da finalidade do lucro e das relações sociais mediadas pelo interesse próprio” (ROSSI, 2014). Infelizmente como diz Benjamim (1987), “o processo econômico assume a forma de festas populares capitalistas através do entretenimento de massa e se torna ele próprio um grande negócio.”
Maior surpresa tive, quando navegando na grande rede encontrei uma nota da secretaria responsável pelo empreendimento, informando porque fez a opção desse tipo de carnaval. A desculpa é das mais esfarrapadas possíveis: para garantir segurança aos foliões. Segue a nota: “Seguindo o novo modelo, não será permitida a entrada de pessoas portando bebidas, garrafas de vidros, copos de vidros, isopores, bolsas térmicas, caixas térmicas ou qualquer outra forma de armazenar e transportar bebidas, sejam elas alcoólicas ou não. Tais medidas visam evitar a entrada de armas e também reduzir a aglomeração na hora da revista pessoal”.
Se o motivo é a segurança, claro que deveríamos ter dados do carnaval anterior, sobre a quantidade de brigas, tentativas de assassinatos, acidentes com garrafas de vidro, problemas com garrafas térmicas etc. Não temos e não teremos, pois pelas minhas lembranças o carnaval nos dois polos no centro da cidade foi tranquilo, especialmente tranquilo no polo da 21 de setembro. Seria mais honesto por parte da prefeitura, informar os reais motivos da privatização da festa e não vir com conversa fiada. “Evidentemente, a sina do capitalismo de penetrar nas várias esferas da sociedade e de transformar tudo em mercadoria se apodera de parte do carnaval que vira negócio, atende aos interesses de patrocinadores, seleciona e elitiza o público pela venda de abadás, pelas festas nos clubes, etc” (ROSSI, 2014).
Esse é o retrato da famigerada parceria público x privado, ideia e negócio dominante numa maioria de legisladores e governantes no Brasil, que pactuando com a economia neoliberal, transforma tudo em negócio. No carnaval isso não vem sendo diferente. “Marcadamente caracterizada por um processo de mercantilização da festa e que constitui o que tem sido aqui referido como carnaval-negócio, parece sugerir uma nova oposição importante, “público x privado”, que atualiza e requalifica as anteriores oposições que sempre caracterizaram a festa (OLIVEIRA, 1996). Essa estratégia não é de hoje.
Segundo Silva (2004, p. 60), “o inicio da mudança da estrutura do Carnaval pode ser identificado a partir da ascensão de organizações de mercado. Principalmente por meio de concorrência e do apoio do Estado e da mídia, essas organizações puderem alterar o valor de capitais específicos, o que implicou uma valorização do capital econômico (e principalmente do capital empresarial) na definição da posição de atores, em detrimento da posse do que, chamou –se de capital de tradição ou da tradição lúdica”. O que vemos é o que está acontecendo em Petrolina, num governo onde a lógica do privado encobre o público, e o mercado, mesmo que seja da cerveja, domina o direito de ir e vir.
Contudo, como diz Rossi (2014) “ainda persiste nas ruas das cidades brasileiras, o carnaval genuíno e espontâneo que constitui um espaço de resistência ao movimento de mercantilização das esferas sociais promovido incessantemente pela economia de mercado. Brincar o carnaval na rua é vivenciar outro espaço de sociabilidade que, apesar de efêmero, consegue dar uma injeção de ânimo no povo brasileiro”. Esperamos que haja resistência, como aquela que presenciei na orla, fora do curral, nas proximidades do posto e nas ruas. Essa resistência o privado não pode conter. Só assim poderemos fazer um carnaval popular, onde a festa do encontro e da diversidade, se sobressaem sobre a sanha do mercado e do circo armado pelo poder público, que teima em fazer um espetáculo contra o povo.
*Moisés Almeida é Mestre em História do Brasil e professor Assistente da UPE Campus Petrolina e FACAPE.
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