O Chiclete com Banana estava no auge, a fantasia ainda era a mortalha e a Banda Mel começava a despontar. Mas, no reduto de uma axé music que se fortalecia, eis que a avenida virou sala de reboco. De cima do trio elétrico Carnaforró, ressoava um vozeirão do tamanho do Nordeste.
Pouca gente sabe, mas parte desse momento histórico está em uma relíquia postada no YouTube em 2009. São imagens da TV Itapoan guardadas por mais de 20 anos pelo cantor e compositor baiano Gereba, responsável pela vinda do Rei do Baião. “Farol da Barra ontem à noite”, informam os caracteres do vídeo.
No chão, a galera arrasta o pé na manha, ao ritmo de sucessos como Vida de Viajante, Riacho do Navio, Cintura Fina e a própria Sala de Reboco. Pela primeira vez na carreira, Luiz Gonzaga subia em um trio elétrico. E muito bem acompanhado. Além de Gonzagão, Dominguinhos, Gereba, Bule-Bule e Grupo Bendegó.
Talvez a primeira vez em que uma sanfona, abraçada por Dominguinhos, fazia dueto com a guitarra baiana, tocada por Zeca Barreto, do Bendegó, irmão de Gereba. “Foi uma porrada! Saímos do Porto da Barra, quando chegamos no Espanhol já tinha 80 mil pessoas acompanhando a sanfona”, calcula Gereba.
No dia seguinte, o Rei do Baião novamente subia no trio, dessa vez no circuito da avenida. Na Praça Castro Alves, o poeta do Sertão tocava para o poeta dos escravos. Luiz Gonzaga teria participado do Trio Carnaforró quatro dias seguidos. “Nos quatro dias, ele bateu o recorde de público da vida dele. Tocou para mais de um milhão de pessoas”.
Os jornais locais se referiram ao encontro, que teve destaque nacional. “O Jornal do Brasil deu uma página falando das duas novidades no Carnaval da Bahia: o Carnaforró e a Dança do Pezinho. Pra variar, né?”, ri Gereba, que neste ano diz ter inaugurado o circuito Barra-Ondina. “O primeiro trio do Circuito Barra-Ondina foi nosso. Nós, com Luiz Gonzaga, criamos o Barra-Ondina. Mas o pessoal do axé odeia que a gente diga isso”.
No ano anterior, em 1985, porém, Luiz Gonzaga já mostrava aproximação com os baianos do Carnaval. A convite de Armandinho, Dodô e Osmar, fez uma participação no disco Chame Gente, que saiu pela RCA. Gravou Instrumento Bom, de Moraes Moreira e Fred Góes.
“A participação dele no disco é um grande encontro com meu pai. Ele fala: ‘Ô, Osmar, quer dizer que agora eu tô no seu trio elétrico’. Aí meu pai responde: ‘É isso aí Luiz, bem-vindo ao trio elétrico da Bahia’”, lembra Armandinho, que considera Luiz Gonzaga um carnavalesco na essência. “Luiz Gonzaga é Carnaval. Pela popularidade e pelo ritmo do galope nas músicas”, diz Armando. “Hoje o Carnaval dá espaço para todo mundo. Naquela época, não. Tinha que ser muito bom. Aliás tinha que ser gênial”.
O convite para Luiz vir ao Carnaval surgiu no ano anterior, em 1985, quando Gereba foi visitar Luiz Gonzaga em Exu (PE), sua terra Natal. Haviam se tornado amigos uns 10 anos antes, em 1974, quando Gereba trouxe Luiz Gonzaga para tocar pela primeira vez em um espaço de respeito na Bahia: a Concha Acústica.
“Botamos 5,5 mil pagantes na Concha Acústica”. Anos depois, em fevereiro de 1979, Luiz Gonzaga se apresentaria, aí sim, no palco mais nobre da Bahia. Novamente ao lado de Dominguinhos, fez uma temporada no Teatro Castro Alves. “Um duelo de sanfonas”, estampou o Correio da Bahia.
O sucesso de Seu Luíz na década de 1980 era a maior prova de que ele havia superado definitivamente um período instável na carreira. Entre o final da década de 60 e início da de 70, enfrentou o descaso da classe média dos centros urbanos e, por consequência, da mídia.
O poeta Capinam também teve sua parcela de “culpa” no ressurgimento de Gonzaga. Junto com Jorge Salomão produziu o show do Teatro Tereza Raquel, em 1974, um marco. O Tereza Raquel lotado mostrava que o rei estava mais vivo do que nunca. Outro tropicalista, Gilberto Gil, sempre deixou claro que Luiz Gonzaga foi sua maior inspiração no início da carreira. Tanto que explorou toda a sua sonoridade em dois discos de forró, um gravado em estúdio (As Canções de Eu, Tu, Eles - 2000) e outro ao vivo (São João Vivo - 2001).
O pai da axé music, o cantor e instrumentista Luiz Caldas, conheceu Luiz Gonzaga no programa do Chacrinha. Se encontraram algumas vezes até surgir um convite que tornou Luiz Caldas o único artista a ter uma música gravada por Gonzagão, quando o que acontecia era o contrário. “Convidei ele uma vez para cantar comigo em um disco. Ele disse: “oxe, é só marcar. Quando fui gravar Amazonas, lembrei e liguei. Ele já tava um pouco adoentado, mas se prontificou", lembra.
“Grandes compositores e intérpretes do Brasil gravaram com ele, mas sempre cantando a obra de Seu Luiz. Eu sou o único que ele canta uma música do outro artista. A música é minha, de Gerônimo e Jorge Matos”. No estúdio da Poligram, no Rio de Janeiro, Luiz Gonzaga ficou todo saidinho para o lado de Rita Caldas, irmã do músico baiano, o que explica a brincadeira que o rei faz no início da gravação. “Ele sempre foi muito saidinho, né? Minha irmã estava cuidando dele e Seu Luiz brinca com ela no início da música: ‘Índio quer mulher. Índio quer mulher’. Estava brincando com Rita”, diverte-se Caldas.
No interior da Bahia, Luiz Gonzaga fez diversos shows em cidades como Cachoeira, Cruz das Almas, Senhor do Bonfim e Monte Santo. Para Jânio Roque de Castro, professor de geografia cultural da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Luiz Gonzaga foi um dos impulsionadores das festas de São João em grandes palcos do interior. “As festas com grandes concentrações começavam a surgir nos interiores da Bahia. Luiz Gonzaga tocou no Recôncavo e outras cidades”.
A ligação de Gonzaga com a Bahia se confirmou com o título de Cidadão Baiano que ele recebeu na Assembleia Legislativa da Bahia, em 1984. Mas quando chegava aqui, dispensava hotel. Tudo por conta da amizade com o fazendeiro baiano Manoelito Argolo, de Entre Rios. “Eram muito amigos”, confirma Gereba. E eram mesmo. Manoelito ganhou até música. Foi assim que virou Manoelito Cidadão, “o maior cabra desse Sertão”. Que nada, Luiz. O maior cabra desse Sertão é Luiz Gonzaga. Do Sertão, do Brasil e da Bahia.
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