GRACILIANO RAMOS OLHA E ESCREVE POR NOSSAS FRESTAS

28 de Dec / 2017 às 16h08 | Reminiscências

Ê Graciliano... Igual não houve ainda não. Que jeito de absorver a gente.

Cada detalhe e fluência fascinam...Elegância no linguajar com seu serrote e formão. Que fraseado, que coceira escondida debaixo da pedra. Nítido, límpido, conciso, não tem pirueta nem ferrolho o seu texto, compõe com rigor para que o caminho não tenha buraqueira nem engano de rumo.

Decidiu não abraçar maniqueísmo e arcar suas consequências. Acompanhou o ser humano na pisada magoada, nos brinquedos que logo se despedaçam e nos sonhos vacilantes. Observou o gentio e seus esquemas como o jangadeiro mira a água vasta e suas manhas e deslimites. No verbo, colheu o que cada pessoa garante em integrar a manada, os seus preços, o que se finge no enxame e a zonzeira de cada vivente.

Tinha tudo pra folclorizar sua quebradinha e se negou. Se meteu na chuva do ciúme, no patético da ganância, no esfolado do orgulho e no bambu da dignidade, a que se curveia inteira e estala, mas não trinca. Não carimbou nas decisões de seus personagens nenhum determinismo geográfico. Pegou a areia do contexto, pôs numa concha da mão e com o canudinho da caneta foi abrindo túnel, dichavando os cristais. Demonstrando quão frágil e arrogante pode ser cada vidrinho. Mestre em demonstrar, dilapidando sutil, como as máscaras se costuram à cara e o medo se enquizila nas unhas do ser humano.

Graciliano escreve pelas frestas dos paralelepípedos empoeirados, pelas cascas das mãos que se apertam em conluio de falsidade, pela vibração de quem gagueja assustado e esconde seu espanto enquanto vai carpindo o dia. Mas é texto úmido, mesmo na obsessão pela ferrugem que há na semente do entusiasmo. Só vê secura em Graciliano quem confunde fogueira com fogos de artifício. Talvez seu grande tema tenha sido a teimosia e por vezes o seu final de linha, a sua coroa de papel molhado arrematando os capítulos de ensaios, memórias e novelas, é o que há de persistência, mesmo que patética, entre tanta falcatrua e cobiça.

Até nas suas histórias de meninos de cabeça pelada desliza aquele que saboreia o linguajar e o que abre as danças que os réus cotidianos tocam entre os tribunais que beliscam e humilham quem põe o nariz pra fora do portão. 

Nas suas crônicas de carnaval, não falta o julgamento, o bochicho violento e o inchaço dos calombos que se acaricia mudo na varanda, após a saída pela porta arrombada dos porretes malpagos. Às vezes, ali se espicha um cadáver na valeta, mas não pelo defunto e seu fedor, pelo aroma grã-fino dos mandantes ou pelo rude sovaco dos patrões que já foram carregadores de sacas, e, sim, pela lupa que apresenta no gesto curvado do peão as estruturas de seu tabuleiro. Em época de linchamentos digitais, de justificativas eriçadas para chacinas e pescoços amarrados em postes, o texto de Graciliano urge porque toca ali na minúcia, no miolinho da sanha de pancada e mostra também as partituras e a harmonia das orquestras do medo, do ódio e da covardia.

Revista Cultura

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