A antiga porta de madeira escura que dá direto para a calçada da Rua Clélia não oferece pista alguma do que existe do outro lado. Ela se abre com um rangido e mostra uma escada de poucos degraus de chão frio que parecem preparar a alma enquanto a sala não chega. Uma bicicleta de circo dependurada na parede, quatro sanfonas espalhadas pelo chão, uma panela usada como lustre sobre a mesa e algo vai acontecendo muito rápido. A Lapa já não é mais ali e nem se está mais em São Paulo quando Lívia Mattos conta a sua história.
Sanfoneira baiana de Salvador, 32 anos, Lívia é das criaturas que passam alguns anos enchendo o dique até que ele transborde com a força da própria correnteza. Seu primeiro disco autoral, depois de alguns anos como instrumentista de Chico Cesar, sai agora. Vinha da Ida é das mesmas surpresas de sua casa. Depois que se entra pelo Nordeste, descobre-se um mundo maior.
Além de instrumentista, ela é cantora e compositora, assina todas as dez faixas e pensa fora dos padrões de um regionalismo ao qual tinha tudo para se amparar com legitimidade. Seu show de lançamento será na sexta (1º), às 21h, no Estrella Galicia Estação Rio Verde, em Pinheiros, com participação de Chico Cesar.
Ao mesmo tempo, Lívia corre com dois outros projetos. O primeiro, que trata com urgência, tem a ver com as memórias do circo, sua primeira paixão desde que passou a trabalhar, aos 15 anos, sob as lonas do Picolino, na orla de Salvador. Música no Circo é um registro audiovisual em fase de produção com entrevistas com veteranos músicos de circo, palhaços cantores e cantadores de picadeiro entre 70 e 90 anos de idade, muitos partindo, cheio de histórias de uma cultura nunca documentada.
A poesia de Lívia tem seus brilhos. Uma das mais delicadas é Os Olhos de Teresa, que ela compôs para a avó. “Os olhos de Teresa / têm mar dentro / uma represa / Os olhos de Teresa / calmos / como quem esqueceu a pressa / Os olhos de Teresa / cinco partos / seis filhos / doze netos / os olhos de Teresa / secretos / novelos / novenas / novelas…” Isso com Toninho Ferragutti no acordeon, além de Lívia, mais a voz e o piano de Zé Manoel, deixa tudo bem bonito.
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