ARTIGO - VIVA O JUMENTO

23 de Jul / 2017 às 13h00 | Espaço do Leitor

Há notícias de que um prefeito do sertão acaba de negociar a venda de carne de jegue para os frigoríficos da China. A medida é apenas uma dentre tantas outras que vêm sendo cogitadas pelas autoridades do nordeste, no sentido de retirar de circulação nosso velho e pacato jumento.

O novo nicho de negócio vem sendo aplaudido como uma mão na roda. Já há até quem fale no surgimento, em pleno século XXI, de um novo ciclo econômico no nordeste: o ciclo do jegue. Algo talvez mais grandioso do que o ciclo do ouro, do couro, da borracha, do café, ou até mesmo da cana-de-açúcar. A ideia é unir o útil ao agradável: retirar o bichinho de circulação e ao mesmo tempo gerar lucro com seu abate, alimentando-se com sua carne os estômagos mandarins.

Os defensores desta e de outras bandeiras semelhantes alegam que o jumento perdeu sua funcionalidade; que se tornou inviável alimentar um animal que já não produz; que o jegue tem trazido transtorno para o homem, provocando, entre outras coisas, intranquilidade no trânsito, onde são frequentes os acidentes envolvendo o animal. E que diante de tais fatos, a única saída é retirar o bicho de circulação.

Verdade é que quem transita pelas rodovias do nordeste talvez já nem se surpreenda com a enorme quantidade de jegues mortos por atropelamentos. Recentemente, numa viagem de pouco mais de uma centena de quilômetros por aquelas bandas, pude ver de perto inúmeros deles caídos na beira da pista, a maioria já em avançado estado de putrefação. Considerando que os acidentes com o animal acabam por envolver igualmente os humanos, ocasionando, também entre estes, expressivo número de vítimas, inclusive fatais.

E não é pra menos: solitário e desprotegido, outra coisa não resta ao manso animal senão perambular sem rumo, em busca de qualquer babugem que possa mitigar-lhe a fome. Seu destino é quase sempre a beira das estradas, onde, apesar do perigo, normalmente encontra algum pasto. Até acho que a beira da estrada foi a alternativa por ele encontrada para fugir do tédio e da solidão, já que estrada é lugar de movimento, de dinamismo, de correria. Afinal, a solidão não mata só os humanos; a solidão mata também os animais.

É obvio que estamos a falar de um animal em pleno fim de carreira, que corre o risco até mesmo de extinção. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que o homem precisou do jumento e o jumento precisou do homem. Uma simbiose perfeita para uma época em que os efeitos da chamada “modernidade” ainda não se faziam sentir com tanta intensidade.

Quando o poder e a velocidade das máquinas ainda estavam por vir, e o facebook e o watsapp ainda não haviam despontado no horizonte da “civilização”, o jumento foi um dos principais colaboradores do homem, servindo-lhe de montaria e auxiliando-o no serviço da agricultura, que ia dede o preparo da terra até o transporte do produto.

O jumento marcou época, transpôs gerações, testemunhou o surgimento do que hoje chamaríamos progresso. Com seu auxílio plasmaram-se culturas, ergueram-se economias, forjaram-se histórias. Não há um campo, uma estrada, a construção que for, onde não tenha o jumento assentado suas patas e derramado sua energia.

Cantado em verso e prosa, o jegue está cercado de lendas. Uma delas reza que aquela cruz estampada nas costas do animal teria sido desenhada pelo xixi do menino Jesus quando foi levado para o Egito no lombo de um jumento, a fim de ser poupado da fúria de Herodes.

Duas experiências me marcaram de modo particular: uma foi quando, certa feita, vi um jumentinho com uma sela enorme que o cobria quase que inteiramente. Parecia uma tartaruga. Fazia horas que estava amarrado e pelo aspecto, percebi que se sentia incomodado com o peso daquele apetrecho a cobrir seu frágil dorso. Outra foi quando, ao me acercar de um jumento alto, acinzentado e meio metido a besta, tomei um coice no pé do abdômen que me laçou por alguns metros e me deixou desacordado por alguns minutos. O coice do jegue é algo simplesmente aterrador. E não há ninguém que viveu no campo que não tenha passado por tal experiência.

O homem usou e abusou do jumento enquanto este lhe foi útil. Depois que perdeu a serventia, tendo, de resto, se tornado um problema grave (como alegam), ao pobre animal restaram apenas o abate e o sacrifício. Entretanto, em lugar nenhum está dito que o jumento foi feito para ser útil ao homem. O jumento foi feito para viver e ser jumento, e apenas isto. Ademais, não parece razoável transferir para o animal a culpa pelos problemas que nós mesmos construímos.

Urge que se garanta ao jumento, agora e sempre, a cota que lhe cabe na comunidade dos viventes, mesmo que isto vá de encontro às conveniências dos ditos humanos.

José Gonçalves do Nascimento

Cronista

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José Gonçalves do Nascimento Cronista [email protected]

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