Eu não conheci Ivete quando ela morava na minha cidade. Não sou amigo dela. Em comum temos 2 coisas: [uma] ter nascido na mesma cidade, cidade-origem-e-destino dos tempos incríveis das navegações no rio que tem nome de santo & histórias & lendas & amores de tudo ou nada e [duas] um amor descabido, sem limites, sem precedentes, com tônica própria, com elã próprio, com o que popularmente se chama de “imaginário”: algo que entusiasma, inspira e cria (em mim) laços de afetividade por: João Gilberto, Expedito Almeida Filho, Luiz Galvão, Coelhão, Tatau, Euvaldo Macedo Filho, José Maurício Diadorim, Maurício Dias (talvez o mais apaixonado de todos), Helton França, Silas França & Dêniston Diamantino.
Foi olhando o espelho destes caras que saquei (ainda menino, nos 8 primeiros) o que era amar Juazeiro. Não dá para explicar ou defender. Está no intangível. Distante dos buracos, das ruas escuras e das vergonhas expostas da minha cidade. O amor por Juazeiro transcende a infraestrutura, transcende a histórica e nociva comparação com Petrolina, transcende as fofocas, as íntimas características provincianas e conservadoras do nosso povo.
Eu sou Juazeiro. Sou a Alma Juazeirense. Sou o Fofocar. Sou a Província. Sou o Conservador do “ponto de ver” de minha cidade. Mas, eu, bebendo nas fontes dos que citei: sou o Amor pela Minha Cidade, e com base neste Amor, preciso testemunhar e reverenciar (faltou-me a palavra mais cabida aqui) o que vi, propiciado por Ivete Sangalo, no desfile da Escola de Samba Grande Rio no Carnaval 2017.
Ivete Sangalo é uma das cantoras de música popular no Brasil que há mais tempo, toca sem parar e faz sucesso sem parar. A opinião-clássica-da-crítica vai dizer que “isso acontece pelos elementos mercadológicos existentes na figura pública dela e nos interesses midiáticos” e etecetera&tal. Vou me distanciar completamente de qualquer elemento advindo da eterna visão da coisa de sempre dos interesses culturais brasileiros. Vou descrever o que senti passionalmente ao ver Ivete e a Grande Rio.
Ivete Sangalo na comissão de frente da Escola de Samba, vestida tal qual o imaginário supõe ser uma Lavadeira do Angari ou Angaris(?). Generosa, mostrando-se como a menina ribeirinha de Juazeiro da Bahia. Barquinhos à margem do rio, batizados com os nomes das canções sucessos em sua voz. Ivete menina-lavadeira lavando sua alma (simples assim), palco da fama, alicerçado nos pequenos barquinhos, pequenos barcos do Rio São Francisco, alicerçam uma pessoa que é a juazeirense mais amada pelo Brasil e pelo mundo nestes tempos atuais.
Você pode não gostar dela, não gostar da música dela, mas Ivete (independente de interesses de mídia ou não), não homenageou Juazeiro. Ela fez a maior Declaração de Amor a Juazeiro da Bahia que já vi. Declaração de Amor captada de forma tão perfeita, pelos compositores do “acelerado e adocicado” samba-enredo da Grande Rio, elemento principal do que estou chamando de imaginário neste texto. O samba fala o tempo todo de Juazeiro:
“Toda essa gente de fé”. Gente de Juazeiro. Fé na Santa encontrada por um índio, e do índio pro vaqueiro, como sugere o hino (eu acho). “O tambor da invocada promete”. A menina que bate o tambor, o tambor das escolas de samba de Juazeiro: Cacumbu, Piratas Reis do Samba, e todas as outras, que não sei se Ivete viu, ouviu ou bateu esse tambor. “Saudade mandou um cheiro”, seria Chega de Saudade de João Gilberto? Se for, acho que mandar um cheiro pra João Gilberto o deixaria muito feliz !!! Outro elemento do amor juazeirense descrito: “Velho Chico, histórias fez lembrar, Nossa Senhora sempre a me guiar”. Contemplação a dois dos elementos míticos de nossa cidade: o Rio e Nossa Senhora das Grotas. Depois desta conjunção pictórica, vem um trecho lindo, refrão do samba:
“E lá vou eu, pé na estrada, E lá vou eu, meu amor
Olhos de fogo da serpente encantada, iluminavam meu destino a Salvador”
Dentre todos os elementos, o samba escolhe os olhos de fogo da serpente para iluminar o destino e o caminhar de Ivete. Parece que o brilho de sua estrela encontra o improvável e o impossível, o apenas sonhado no cúmulo da intimidade acontece neste momento: os símbolos sagrados, profanos, poéticos e existenciais de todos os artistas juazeirenses que precederam Ivete Sangalo se alinham sobre a cabeça dela, abençoam sua trajetória com uma luz vinda da explosão dos astros que explodem. Ela chega, ao que, talvez, nunca tenha sonhado com tanta grandiosidade e detalhes de realização, mostrando-se grata e generosa.
E aí (seja pela suposta maquiavélica perpetuação de sua carreira, como dirão os chatos usuais e polêmicos das redes sócias) ou não. Ela mostra que é a cantora mais popular deste país. E ela simplesmente é. Ivete soube saber e fazer o que tinha que ser feito. Eu não sei como ela sabe acertar durante toda sua trajetória musical, simplesmente pelo apelo midiático como supõem. Só sei que ela sabe ser a artista que há mais de vinte anos brilha no céu da música do Brasil. E Brilha Forte!
Tem um verso lindo do samba-enredo que acho que é o início do alicerce do pilar de sua trajetória: “Minha família, doce inspiração”. A família de Ivete, pelo que ouço falar, sempre se empenhou no êxito da carreira e da inteligência emocional dela...
Mas tem um trecho do samba, que eu acho o mais lindo de todos. E neste quesito, acho eu, que encontramos nossa terceira coisa em comum: [ três ] o elo fundamental do que se é, o elo transformador que transforma todas as nossas referências, todo nosso amor, em coisas que fazemos na generosidade do ser, na amplitude de pertencer a um lugar que criamos como nossa identidade, a um lugar que definiu o que somos e fazemos. Comigo aconteceu aos 7 anos quando ganhei um antigo dicionário de Tia Dirce e mudei minha vida. Com Ivete acho que foi algo que versa o samba:
“Adolescente, abraço o violão”
Acho que isso mudou a vida de Ivete. Quem conviveu com o pai dela, Alsus San Galo, na minha cidade, relata, sua paixão pela música, pela boemia e pela família. No dia que Ivete recebeu o violão do pai (como diz a lenda), acho que sua alegria explodiu em escala big bang e o pai ali, no auge de sua festividade existencial, definiu o brilho da filha. Durante o desfile da Grande Rio, eu pensava na alegria e no que ele estaria sentindo naquele momento, vendo sua filha ali. Eu não sei dizer o nome do sentimento dele. É estranho pensar sobre os sentimentos de um homem que nem conheci. Mas Juazeiro é assim: uma cidade onde você ama as pessoas que não conheceu. Uma cidade que recebe o amor na proporção que recebeu neste Carnaval 2017. Ivete fez algo que eu nunca tinha visto alguém fazer. E ponto. Assim como o samba-enredo da Grande Rio, este é um texto em primeira pessoa. Minha primeira pessoa tem neste texto o amor para Ivete Sangalo. Abraço seu violão: gratidão, reconhecimento, alegria. Emoção, o Amor. E eu, que cultivo no meu jardim as palavras, não sei dizer a palavra certa. Ivete: você fez e viveu algo para além da música, da arte e até do amor. Foi assim que me senti! Imagine...
Ângelo Roncalli, 40, escritor de Juazeiro.
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