ARTIGO - SAUDADE DA MINHA INFÂNCIA

17 de Oct / 2016 às 23h00 | Espaço do Leitor

Dr. Carlos Augusto Cruz

Aqui dentro em mim, ainda está bem vivo o menino pobre, criado numa das ruas da periferia da cidade, cuja casa era de taipa e tinha o muro cercado de varas de canudos (Ipomoea carnea) – planta que nascia em abundância nos beirais das lagoas da cidade -  que, naquela época, eram abundantes.

Cresci estudando em escolas públicas, porque o salário do meu pai não era suficiente para pagar para mim, uma escola particular. E, nesse diapasão, fui de escola pública em escola pública, até a minha graduação em Medicina pela Universidade Federal da Bahia, sem nunca ter sentido o gostinho de haver estudado numa escola particular. Que vergonha para o ensino público de agora!

Quando era criança não tive irmãos. Não porque não os desejasse; isso sempre foi o que eu mais quis. Mas, uma das causas foi por motivo do pouco desenvolvimento da medicina naquela época, principalmente em nossa região, onde ainda se morria, e muito, de doenças que são perfeitamente evitáveis hoje em dia. Diarreias, poliomielites, verminoses, pneumonias, desnutrição e, etc. Foi justamente dessas doenças que vi um irmão meu morrer a cada ano, mal acabara de nascer.

Isso para mim se transformava em uma grande frustração. Meus pais pareciam não desistirem de, ano após ano, terem um filho, e o filho nascituro também não desistia de, ano após ano, morrer.

Devido a não ter irmãos, brincava sozinho no muro da minha casa que, para mim, criança que era, parecia, um espaço sem fim e interminável.

Nele eu apanhava arraias dos outros meninos quando, empinando-as baixo, atrás da Rinha de Galos. Eu, usando de uma vara enorme, enrolava-a na linha da arraia e puxava para dentro do meu território ou do meu universo – o meu muro. Ali ninguém me perturbava, pois eu tinha as casas das minhas tias, situadas antes da minha, que funcionavam como fortaleza, garantindo assim, a limpidez ou, pelo menos, a validade do meu ato.

Quando chegava um circo na cidade, aquele encontrava espaço para ser armado bem próximo a minha casa. Perto das roças de Dona Jovem e de Seu Bitú. De logo em recebia uma ordem expressa do meu pai:

“Você não pode, e nem deve gritar o palhaço! Caso você chegue em casa com a marca do palhaço no braço, eu lhe darei uma surra”.

Só quem nunca foi criança ou quem não viveu o tempo em que os palhaços dos circos saíam pelas ruas fazendo a propaganda do espetáculo a ser apresentado na noite, é quem não teve vontade de gritar o palhaço, porque o resto todo teve. Comigo não poderia ser diferente.

Naquele tempo não existia, ou se existia não se usava com tanta frequência, esses aparelhos de som potente, com os quais os donos de carros de propaganda e os play-boys, nos irritam os ouvidos em cada rua e em cada bar da cidade. O coitado do palhaço tinha que sair montado em duas pernas de paus, usando na boca um megafone feito de flandre, para ampliar a sua voz, gritando para a gurizada responder, a fim de entrar de graça no circo à noite:

“Raia o sol suspende a lua”

Resposta: “Olha o palhaço no meio da rua”.

Ou então:

“Dona Mariquinha se eu pedir você me dá,

Resposta: “Uma cama prá eu dormir e um pinico prá eu mijar”.

Rua acima, rua abaixo, gurizada atrás de sí, lá ía o palhaço naquelas tardes fazendo a propaganda do circo e do seu espetáculo para logo mais à noite, após haver marcado o braço dos garotos que se propusesses em acompanha-lo na sua peregrinação pela cidade, com um número, o que serviria de senha para o ingresso à noite na sessão do “soirê” do circo.

Ao ver os trapezistas evoluírem nos seus instrumentos de trabalho circenses, ao chegar em casa, pegava um pau de vassoura, dois pedaços de corda, amarrava na linha do alpendre, tomava um par de meias velhas, cortava os calcanhares e as partes que cobria os dedos dos pés, assim travestido estava crente que era um trapezista e, solitário, sem nenhuma plateia para me aplaudir, a não ser a plateia da minha imaginação, subia naquele arremedo de trapézio e tentava fazer algumas evoluções. Morria de orgulho quando conseguia, ao menos, segurar o corpo com os as pernas e soltar as mãos, balançando prá lá e prá cá. Isso prá mim era o máximo.

Alguém sabe me explicar porque é que os anos da nossa infância se passam tão depressa?

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