* Paulo Carvalho (SPO)
“Se você quer saber como eu me sinto, vá a um laboratório ou um labirinto”.
Cobaias de Deus - Cazuza
Sinto a manhã nascendo morta
E o Sol crescendo em meus olhos como bolas de fogo
Urubus matinais rondando cadáveres
Contando segredos aos vermes de cemitério
Minhas pálpebras amanheceram sedentas de luz
E o túnel por onde ando continua sujo e úmido
Minha poesia não canta mais as alegrias do mundo
Vive suburbana comendo entre mendigos e prostitutas
Às vezes escondida em ruínas medievais
E nas cinzas dos mártires que se foram,
Vítima de cruéis inquisidores, não vive mais.
Mas meu canto dilacerado e febril
Meu amor mundano agora sofre em clínica
Estou como uma asa de borboleta
Deitado numa maca, desgraçado pela vida
Sangue que escorre em salivas desconhecidas
E mãos que me aprisionam, e bocas que me alimentam
Amor que não mais terei.
Sinto todos os sintomas, tomo todas as pílulas,
Calo diante do medo, grito meus segredos mais íntimos
Como lâminas de um liquidificador
Minha dor não vale mais que meus órgãos falidos
Descosturados para compor outra história
Nem o sangue no lençol, nem o esperma na seringa,
Nem o beijo no tubo de ensaio, nem o soro, nem o suor
Vão reconstruir os meus castelos juvenis
Meus passos estão cansados e minha vida é uma bengala,
Tem dias que sou rodas, e minha poesia é a asa que me falta para voar!
Quero cantar nos corredores dos hospitais
E ao menos às crianças aidéticas deixar a minha paz
O sintoma mais poético do que patético
Para não cair no tédio de uma loucura fugaz.
O medo é cor-de-rosa e o caos é azul
Mas a desordem da minha alma me seduz
Espanto do meu pranto os urubus
Procuro no seu olhar o meu olhar
Um cristo comunista descendo da cruz
Para nos salvar, nos salva Jesus!
Que no infinito eu possa ouvir o meu grito
Como vôo de suaves patativas
A esperança silenciosa da vida
E o sussurro como sopro de Deus
É chegada à hora do adeus
E o trem da morte se aproxima.
E hoje o entardecer sangrou mais cedo
E um beijo ébrio desenhou meu medo
Mas meu amor foi mais forte e venceu a dor
E a luta pela vida, a minha vida prolongou
Mesmo que todos os sintomas da doença
Mexam com o meu corpo e a minha cabeça,
Não matarão o meu amor
E esse risco de prazer e agonia
Como uma cobaia desvalida pela sorte
Serei a luz que resplandece em minha poesia
E o suco da seringa, a borracha e a anestesia,
Apenas uma fantasia, não uma realidade,
De quem quer a VIDA e não a MORTE!
- Uma homenagem ao poeta do rock Cazuza -
* Paulo Carvalho é jornalista e escritor.
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