Inconformado, revoltado, injuriado, indignado e muito tristonho. Assim achava-se Deus, o Criador onipotente e onipresente de todas as coisas, segundo o livro da Bíblia. Da matéria bruta perpassando pela matéria enraizada, matéria animada, até no que mais sonhou e apostou ser a sua obra prima perfeita: A matéria humana, demasiadamente humana. Pensando, matutando, refletindo, raciocinando, meditando, confiando nesse coletivo sinonimal que o acompanha desde longínquos tempos. Estava às voltas, repetidamente, com incomensuráveis perguntas a si mesmo e aos seus borbotões: Como tudo e mais que tudo chegou a esse ponto se o mais que tudo foi criado com tanta beleza, carinho, credo, esperança, amor? Como o mais que belo ser tornado mais que feio? O amor ser tornado ódio? A paz ser tornada guerra? A esperança ser tornada desespero? O homem de origem ser tornado o homem de sem origem, o de hoje? Olhando bem do firmamento para a terra, lá embaixo infestou-se em erros atemorizantes, tenebrosos, a parecer sem recuos. Por que os homens nem mesmo mais sonham salvarem a si próprios e ao seu mundo? Fi-los fortes, saudáveis, inteligentes. Dei-os o livre-arbítrio, a liberdade, a força de vontade, o entusiasmo, o bom humor, a coragem, o sexo. Provi-os de tudo para todos os obstáculos, dos transponíveis aos intransponíveis, dos eternos aos efêmeros.
E Deus lamentava lacrimejando. Sim, Deus é sensível e chora. Por que não? Tem parte humana. Algo teria que ser feito com a máxima rapidez e urgência urgentíssima. O homem de hoje estar perdido, perdidinho da silva. O Criador anotou na cadernetinha alguns dos por quês: Pessimismo, raivas, ódio, desprezos, arrogância, ganâncias, gula, adultérios, desamor, guerras, doença, pedofilias, estupro, tráficos, desigualdade, vícios, falsidade, mentiras, assassinato, seitas, preconceito, discriminações, desmatamento, poluições, bomba, armas, falta de fé. Como meu Deus, dizia Deus a si mesmo, o homem chegou ao homem de hoje se tem uma natureza boa por ser concebido alma limpa e anjo ingênuo?
Então, o importante é curá-lo, fazê-lo retornar à inocência do nascimento. Começar do zero, eis a questão. Deus, sem relutar, concluiu: Enviarei de volta à terra, os meus melhores, incorruptíveis, mais experientes e competentes profetas. Após algumas pesquisas resolveu que a cura do homem de hoje se daria a partir do país mais perdido: O Brasil. Isso bastaria para servir de exemplo ao resto do mundo.
E veio o profeta Daniel aportar no Rio de Janeiro. Chegou logo em época de carnaval carioca. Para começar o imponente trabalho de edificação do homem de hoje, após deliciar-se com Gilberto Gil cantando que o Rio de Janeiro continuava lindo, visitou favelas, UPPs, assistiu a teatros, shows do Rappa, Zeca Pagodinho, Luiz Melodia, baile funk e foi a um Maracanã lotado ver in loco um FLA x FLU daqueles com, imagina só, camisa do Mengão. Antes conheceu Copacabana e deliciou-se com feijoada, samba, caipirinha e chope gelado. Odiou o reallity BBB, porém, simpatizou com as novelas e caia de gargalhadas com a Escolinha do professor Raimundo. Dormiu no Copacabana Palace. Não se sabe ao certo se teve ao menos a dignidade de visitar o Cristo Redentor. Nunca se soube. O que se soube mesmo é que a última vez que o viram foi sambando na quadra da Escola de Samba da Mangueira vestindo camisa regata com pintura com estampa de Cartola, acompanhada de Chico Buarque e Beth Carvalho.
Agora....
Nem pensar, Deus não desistiu e somente sentiu pena das fraquezas de Daniel. Achou-o apenas demasiado humano por sucumbir às mundanices profanas do homem de hoje.
Não pensou muito e remeteu à terra o segundo profeta: Isaías. Dessa vez para a metrópole São Paulo. Ao chegar foi logo ouvindo a música Sampa de Caetano Veloso e de imediato tratou de percorrer a Avenida Paulista, celeiro do coração capitalista do Brasil. Deslumbrou-se com tantos e tão altos edifícios, prédios, indústrias, empresas, universidades, lojas, shoppings, bancos, boates, mercados livres, praças, credos, estádios, museus, fumaça preta, musicais, teatros, danças, cores, raças e sotaques.
Encantou-se de cara com a Fiel corintiana e quis saber de Luiz Inácio lula da Silva. O Lula dos pobres. Sem titubear embrenhou-se de alma e corpo dentro de um paletó e gravata borboleta. Visitou bancos e arriscou-se em mercados imobiliários com bastante prazer e gosto. Até tentou a sorte no jogo de bicho e em loterias da Caixa. Decidiu fazer vestibular e estudar Economia na USP. Sentiu que poderia ser um perfeito homem de hoje nos negócios e até virar um político tucano. A última vez que o viram foi zoando e gesticulando à beça entre celulares e computadores na Bolsa de Valores de São Paulo.
Apesar das seguidas desilusões nem pense nem pensa em desistência. Dias contínuos, eis que Deus ponderou muito. Pensou mais de que uma dúzia de vezes até apressar algo somente previsto para tempos após: A volta do seu filho mais pródigo à terra. Lógico, Jesus Cristo, o filho de José e Maria. O eterno filho do Senhor. A pérola do Criador de todos os universos. Cartada final, pois, Jesus Cristo continuava bastante idolatrado e os seus ensinamentos de outrora e das antrolas ainda estavam acesos na mente e no coração do mundo cristão. Portanto e de forma natural, o Filho de Deus haveria de mudar e dar um jeito no homem de hoje e o seu mundo. Antes, claro, Deus passou um tempão em conversas e mais conversas, instruções e mais instruções, táticas e mais táticas, dicas e mais dicas, conselhos e mais conselhos, até pedir um enorme cuidado de Jesus com o homem de hoje. “ Meu Filho, tome cuidado, pois, o homem de hoje já não era nem sombra do homem de antes”, afirmava. “Mudara e para muito pior. Bote pior nisso e multiplique setecentos vezes sete”, alertava enfaticamente Deus ao seu Filho. Realidade insofismável, o homem de hoje tinha as rédeas sobre si e usava descaradamente o Seu nome, do seu Filho, dos santos e profetas em vã leviandade. Tudo pelo poder e dinheiro. Para Deus a invenção do dinheiro foi uma perda celestial para o diabo. O diabo por um descuido Seu criou, via homem de hoje, o dinheiro. E com ele todos os males da desumanidade reinante contemporânea. Jesus, então, não poderia em hipótese alguma falhar. No fundo, por mais que quisesse não, temia era que até Jesus Cristo caísse na lábia, nas armadilhas, nas artimanhas e manhas do homem de hoje. Ô se temia!
Deus estava assombrado de observar que depois dos castigos de tantas guerras, terrorismos, doenças endêmicas e incuráveis, desastres naturais, o homem de hoje teimava em não se tocar e a se comportar humanisticamente. Mesmo triste, Deus jamais desistiria do homem de hoje, pois, foi criação entusiástica sua. Por isso e por todos os por isso era que, sem relutância alguma, mandaria a mais perfeita de sua obra de volta à sua terra natal. A esperança era que com Jesus Cristo o homem de hoje voltaria a ser temente. ” Deus me livre, repetia a si, Cristo , o meu Jesus, não haveria de fragilizar-se e capitular ante o homem de hoje”. Pronto, após infinitas análises e estudos, Deus sentenciou: Vai com Deus, meu Filho, e faça jus à maior missão de sua eterna existência: SALVE A HUMANIDADE!!!
Para onde viria Cristo, já não pairavam dúvidas: A Bahia.
A Bahia continha, em pesquisas e visões práticas, as maiores reservas imorais, anti-éticas, de pecados mortais humanos: Terreiros de macumba e candomblé, misticismo religiosos exacerbado, promiscuidades na música, fala, teatro, cinema, vestimenta, malandragem, preguiça, poder e política. Prato reforçado e cheio para mudando o baiano, mudar o homem de hoje e, de quebra, o resto do Universo...” Meu Deus que sou Eu, tomara que dê certo”, resmungou reticente.
Resolução tomada, veio Jesus cair na Bahia e na cidade de São Salvador. Pleno verão. Sábado ensolarado, Jesus Cristo estreou na Bahia logo no Porto da Barra. Tomou água de coco e viu de forma uníssona e unânime uma praia linda, gente bronzeada, música alegre, balanço de tudo o que é lado. Experimentou vatapá e abará. Porém, amou mesmo foi o acarajé com camarão e pimenta. Assim foi que surgiu o gosto pelo chope gelado, que o apresentou à senhora cachacinha. Um empolgado Jesus Cristo conheceu a cultura baiana, os baianos e os passinhos afoitos atrás dos trios elétricos. Ficou caidinho de paixão pela bossa nova de João Gilberto, o tropicalismo de Gil e Caetano, o samba de roda do recôncavo, o forró de Luiz Gonzaga e Targino Gondim, o afoxé do Ilê e do Olodum, a capoeira e o axé. Leu bastante Jorge Amado e João Ubaldo. Jesus Cristo se achou em casa.
Muitíssimo assediado pelas mulheres, achavam belo o visual punk, Jesus Cristo foi logo se aprochegando com a moçada. Pudera, também voltou à terra da mesma forma que saiu e que a bíblia o concebe: Branco, alto, atlético, cabelos longos e lisos, olhos azuis, roupas pop, papo agradável, grandioso palestrante, orador, pessoa do bem e muito fraterno nas relações, gestos e ações. Frequentou oráculos, terreiros, igrejas, festas religiosas. Proferiu proféticas palavras de amor ao próximo. Identificou-se com a juventude transviada e a galera frenética do bem à La Os Novos Baianos. Nunca se soube ao certo se namorou, casou, o que bebeu e usou. Soube-se, sim, é que, “ Como caldo de galinha e cautela não faz mal a ninguém”, Deus de prontidão ligeirinho o transferiu de Salvador para Juazeiro-BA. Afinal, a Bahia começa e termina nesse interior baiano. E, pasmem! Jesus Cristo encantou-se por Juazeiro. Velho Chico, orla, muqueca de peixe, Angary, Piranga. Conheceu maravilhado João Doido e a história de Maria Pezinho.Curtiu à beça a bossa nova de Mauriçola, o forró autêntico de Targino Gondim, o som de barzinho de Neto e Mundinho, os recitais de Manuca, o teatro de Élder Ferrari, a poesia de Pedro Raimundo Rego e Luiz Galvão, a crônica de Otoniel Gondim, o folclore histórico de Bebela, o discurso político inflamado de Joseph Bandeira, as artes plásticas de Parlim, Coelhão, Lêdo Ivo e toda a cultura e arte da cidade. Adorou de fato, as saídas malucas com os malucos da terrinha. Paixão pura. Ainda perambulou pelos bairros pobres da cidade, acalentando as pessoas ainda não inclusas socialmente, com palavras de fé, amor e esperanças. Apaixonou-se pelo fumacê do pôr do sol da Ilha do Fogo e do Rodeadouro, locais onde foi visto pela última vez na terra. Dizem por aí que, por ele, teria ficado para sempre. Dizem, lá em Manelão.
Deus, um pouco sem esperança, tratou rápido de ordenar a sua volta, enquanto era tempo.
Eis que Jesus Cristo bate na porta do céu: Tum! Tum!
------ Quem é? Pergunta São Pedro.
----- Sou eu, Pedrão.
----- Ah, é você Jesus Cristo?
----- Jesus Cristo, não. Meu nome agora é Jésuz Cryston!
E adentrou céu a dentro.
Deus, melancólico, triste, decepcionado, vaticinou:
SALVE-SE QUEM PUDER!!!
Otoniel Gondim - Professor, Escritor, Compositor
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