Artigo: Cada vez me interessa menos falar de literatura

26 de Mar / 2025 às 23h00 | Espaço do Leitor

Por vezes, quem estuda literatura sente necessidade de delimitar as fases criativas de um autor. Sistematizada no século 19, a historiografia literária está repleta de exemplos dessa abordagem, o que talvez se explique pela pretensão de decifrar estágios da vida em correspondência com determinados episódios ficcionais, pressupondo que traços da personalidade empírica transpareçam e justifiquem a dicção de narradores e personagens.

Esse modo de ler costuma conter um pressuposto didático: exercitar a comparação entre diferentes narrativas de um mesmo escritor, examinando-se os variados gêneros literários que produziu; os múltiplos temas que ficcionalizou; as diferenças no estilo de escrita ao longo do tempo etc. Contudo, corre-se o risco de imobilizar as múltiplas faces da obra literária.

Desde cedo, a extensa produção de José Saramago passa por escrutínio similar, problematizado pelo escritor na longa entrevista que concedeu a Carlos Reis em 1998 – ano em que recebeu o prêmio Nobel. Saramago colocava em xeque a hipótese crítica de que fosse autor de “romances históricos” e de que teria abandonado essa modalidade, após a publicação de O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). A seu ver, os contos, peças e romances que escrevia dialogavam com a história, variando apenas a ênfase posta nos dados, trabalhados em prol da ficção. A argumentação faz muito sentido, especialmente se levarmos em conta que o escritor não concebia história de modo linear e teleológico, mas como simultaneidade de eventos dispostos sobre um mesmo painel.

Obviamente, não se está a sugerir que certas marcas do autor não participam da própria obra. A questão está em discutir qual o limite entre a análise ficcional, admitidas variadas perspectivas interpretativas (formal, histórica, social etc.) e o mero biografismo.

Comentemos um episódio que pode colaborar nesta reflexão.

O discurso Da Estátua à Pedra – o Autor Explica-se foi lido na universidade italiana de Turim, em abril de 1998. Na ocasião, José Saramago participava de um evento onde especialistas analisavam a sua obra. A certa altura, convidado pelos organizadores do certame a falar, o escritor sublinhou que, à diferença de Alexandre Herculano, historiador e romancista do século 19, “Memorial do Convento não pertence a este tipo de romance histórico. É uma ficção sobre um dado tempo do passado, mas visto da perspectiva do momento em que o autor se encontra, e com tudo aquilo que o autor é e tem”.

Embora essa aguda observação de Saramago tivesse grande relevância, parte da crítica especializada (posterior) se concentrou na segunda parte do discurso, supondo que fosse mais importante nomear e afixar as duas fases do escritor – situando-as antes e depois do Evangelho. José Saramago admitiu que havia diferenças de perspectiva em sua obra (só percebidas após a publicação de Ensaio sobre a Cegueira, em 1995); porém, ele não tinha consciência disso, antes de escrevê-lo: “Quando terminei O Evangelho ainda não sabia que até então tinha andado a descrever estátuas. Tive de entender o novo mundo que se me apresentava ao abandonar a superfície da pedra e passar para o seu interior, e isso aconteceu com Ensaio sobre a Cegueira”.

A escrita literária é um trabalho em constante mutação, sujeito a circunstâncias e novos pontos de vista, que o autor não consegue antever. É relativamente cômodo, mas deveras simplificador, pautar o exame da obra de José Saramago em fases, períodos, estágios… O que parecia estar implícito nos seus discursos e entrevistas era a percepção de que suas obras, embora escritas em momentos diferentes, permitiam o duplo movimento da audiência: lidas de trás para frente, deixavam ver que a estátua se comunicava com a pedra; lidas do começo para o fim, as narrativas poderiam ser captadas não como etapas que sinalizassem a suposta evolução do autor; mas como partes complementares de um processo em constante transformação.

De que trata Ensaio sobre a Cegueira? De variadas condições humanas, situadas a meio caminho entre o cotidiano e o extraordinário. A cegueira branca impacta pessoas comuns, de trajetórias mais ou menos previsíveis. A ação se passa num cenário urbano que poderia ser Lisboa, Porto, Braga ou Coimbra; mas também se assemelha a pedaços de São Paulo, Londres, Paris, Moscou, Pequim, Nova York, Lima, Buenos Aires ou Cidade do Cabo… O engenho do escritor não reside apenas na invenção de um mal fictício que não pode ser diagnosticado pela medicina tradicional, mas nas consequências da falta de visão (real e alegórica) das personagens.

Em meio ao caos, provocado pela cegueira geral, os papéis sociais ora se invertem, ora se reafirmam. As autoridades recaem no autoritarismo; os oportunistas se aproveitam da ocasião para obter vantagens; alguns morrem; outros sobrevivem. Em contraponto, o modo como a mulher do médico age permite contestar o egoísmo; certas atitudes da rapariga de óculos desacreditam os clichês moralistas, vociferados por hipócritas. No plano geral, o comportamento tido por ordeiro pode resvalar no crime; os dogmas, as leis e os costumes são colocados em suspenso por conta de um fenômeno inédito.

Emprestando outro sentido ao que venhamos a compreender como romance histórico, Ensaio sobre a Cegueira também pode ser lido como reflexão sobre a cronologia recente das gentes forradas de neoliberalismo, ideologias excludentes e pensamento único. Seres que, de um instante para outro, precisariam reaprender como agir de modo solidário; portar-se de modo inclusivo e problematizar o discurso plano, reto e unívoco. Por sinal, a exemplo do que aconteceu em obras precedentes e posteriores a esse romance, José Saramago também sugeria (em 1995) que o texto literário envolve fruição, mas também pode ser pretexto para engajar os leitores.

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

Jornal da Usp

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