O crime se torna entretenimento: como o true crime transformou assassinos em estrelas

24 de Dec / 2024 às 21h30 | Variadas

Nos últimos anos, o gênero true crime, que em tradução literal significa “crime real”, tem dominado plataformas de streaming, redes sociais e até mesmo debates culturais. Séries como Dahmer: Um Canibal Americano (2022) e Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal (2019) conquistaram milhões de espectadores e geraram discussões acaloradas. Contudo, o crescimento desse conteúdo levanta uma questão preocupante: estamos transformandotragédias reais em entretenimento lucrativo? Esse consumo desenfreado não apenas explora ador alheia, mas também corre o risco de inverter valores morais, glorificando criminosos enquanto ignora ou desvaloriza as vítimas.

O estudo publicado pela Civic Science, em 2019, revela que o público majoritário desses conteúdos são mulheres. Os dados divulgados pelo Spotify corroboram essa tese ao mostrar que 70% do público que consome podcasts de true crime são do gênero feminino. Enquanto em plataformas como TikTok e YouTube, vídeos do tema acumulam bilhões de visualizações, liderados por criadores de conteúdo e canais especializados no assunto, serviços de streaming como Netflix, Max e Globoplay continuam investindo pesado no gênero, dada sua comprovada capacidade de atrair audiência massiva.

Mas por que, afinal, mulheres são as maiores consumidoras? Especialistas como Karen Scavacini, mestre em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e fundadora do Instituto Vita Alere, apontam que o anseio por segurança e informação desempenha um papel crucial. A psicóloga discute em entrevistas o interesse das mulheres pelo gênero true crime, destacando que para muitas, entender os padrões de comportamento de criminosos é uma forma de prevenção, um aprendizado sobre como evitar situações de risco.

Essa perspectiva, entretanto, é dupla: enquanto o aprendizado pode ser benéfico, o excesso de consumo pode gerar ansiedade e perpetuar uma visão distorcida da realidade. Um exemplo de abordagem problemática são as produções supracitadas, Dahmer e Ted Bundy, que transformaram assassinos brutais em personagens quase heróicos, glamourizados pela narrativa e pelo apelo estético.

Jeffrey Dahmer, interpretado por Evan Peters, é apresentado com uma complexidade que, embora bem produzida, desvia o foco da monstruosidade de seus atos. Dahmer foi responsável pelo assassinato de 17 jovens e homens, muitos deles negros, latinos ou pertencentes a minorias vulneráveis, vítimas que ele atraía sob o pretexto de trabalho ou amizade antes de cometer crimes brutais, incluindo necrofilia e canibalismo. Ainda mais perturbador é que, mesmo após sua condenação, Dahmer recebeu cartas de apoio, fãs obcecados e até propostas de casamento.

Já o filme sobre Ted Bundy, com Zac Efron, beira o absurdo ao enfatizar a “irresistível aparência” do assassino, reduzindo suas vítimas a meros detalhes da história. Bundy, que confessou o assassinato de mais de 30 mulheres, usava sua aparência e carisma para atrair vítimas em locais públicos, muitas vezes simulando estar ferido para despertar empatia.

Durante seu julgamento, Bundy também recebeu declarações de apoio de admiradoras que se recusaram a acreditar em sua culpabilidade. Essas obras ilustram como diferentes narrativaspodem distorcer fatos e criar empatia por quem não a merece.

Em contraste, criadoras como Joyce Rodrigues (Ler Até Amanhecer) e Marissa Corrêa Lima (Lady from Stars), e jornalistas como Jaqueline Guerreiro, oferecem um conteúdo que informa e respeita o público. Seus vídeos equilibram curiosidade e responsabilidade, evitando a romantização dos criminosos e promovendo debates construtivos. Essa abordagem deveria ser o padrão, mas, infelizmente, ainda é exceção em um mercado movido pelo lucro.

Além do apelo psicológico e cultural, o consumo de true crime reflete também questões mais profundas de gênero e sociedade. O patriarcado, como estrutura, molda tanto as narrativas quanto o impacto delas sobre as mulheres. Em uma sociedade em que elas são majoritariamente as vítimas de violência, o gênero true crime serve como um espelho de desigualdades históricas, mas também como um alerta.

Dados locais reforçam essa urgência. No Estado da Bahia, em 2022, foram registrados 91 feminicídios, segundo o relatório "Elas Vivem" da Rede de Observatórios da Segurança. Em Juazeiro, além da violência doméstica, disputas entre facções intensificam os riscos para as mulheres, revelando um panorama alarmante. Essas informações não são apenas números; elas refletem histórias reais de dor e luta por justiça.

Casos como o de Samara dos Santos Evangelista, de 39 anos, morta a tiros em outubro de 2024, enquanto estava conversando com um grupo de pessoas em frente a casa de uma amiga no bairro Coréia, e o de Aparecida Rodrigues de Gois Ferreira, técnica de enfermagem de 43 anos, assassinada em dezembro durante um assalto enquanto estava indo á igreja com sua filha de seis anos, evidenciam a vulnerabilidade das mulheres em diferentes contextos de
violência.

Nesse quadro, o consumo excessivo de conteúdo violento tem suas problemáticas. A pesquisa de Alessandra Ueno, publicada no Jornal da USP em 2023, mostra que a repetição de conteúdos violentos pode desestabilizar o público influenciando a forma como interpretam situações violentas no cotidiano. A pressão pela audiência leva a mídia a produzir narrativas cada vez mais sensacionalistas, priorizando o entretenimento em detrimento da ética. Essa tendência transforma monstros reais em protagonistas carismáticos, contribuindo para a inversão de valores sociais.

Ao meu ver, o problema não está apenas no consumo, mas na forma como essas histórias são contadas. Um gênero que poderia educar e conscientizar, muitas vezes, reforça estereótipos e distorce a realidade. Sendo assim, enquanto a mídia continuar priorizando lucros e desconsiderando a responsabilidade, as vítimas continuarão a ser ofuscadas pelos holofotes agora voltados para seus algozes.

Em suma, o gênero true crime pode ter seu valor informativo, especialmente para mulheres que buscam proteger-se em um mundo marcado pela violência. No entanto, é imprescindível questionar as narrativas que consumimos. Não devemos permitir que criminosos reais sejam transformados em personagens admirados. A memória das vítimas merece respeito e histórias que inspiram justiça, não empatia por monstros.

Maria Eduarda Silva é estudante do 6º período do curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB campus Juazeiro.
 

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