Reisado: A tradição popular que perde força e ameaça desaparecer com o tempo

20 de Dec / 2024 às 20h30 | Variadas

O Reisado é uma manifestação cultural antiga, que vem perdendo força com o passar dos anos.

Dona Antônia, 77 anos, moradora da comunidade de Brejo Grande, no interior de Campo Formoso na Bahia a 405 km de Salvador, cresceu com a cultura do reisado presente na infância e juventude,

“Porque quando eu tive entendimento de gente, com uns 8 anos, já tinha reisado aqui na região[...].A minha mãe e meu pai contavam que eles iam para o reisado feminino.”, relembrou com alegria Dona Antonia.

A festa de Reis é uma festa rica e diversa que surgiu na Europa e no Oriente durante a Idade Média, chegando na América através dos navegadores europeus. No Brasil a cultura do reisado se popularizou em diversas regiões do país com diferentes tradições e nomes como “Terno de Reis, Tiração de Reis, Folia de Reis, Reisado – de Congo, de Caretas ou de Couro, de Caboclos, de Bailes”. Considerado como um rito cultural religioso, por contar através de encenações as histórias presentes na bíblia, como o nascimento do menino Jesus e a trajetória dos três reis magos que foram guiados por uma estrela e ofertaram ouro, incenso e mirra ao recém-nascido. 

 O evento acontece de 24 de dezembro a 6 de janeiro. O dia oficial dos Reis, conhecido como Reisado, marca o fim da época natalina e é celebrado em 6 de janeiro, também conhecido como o Dia da Epifania. Neste dia, as famílias desmontam os enfeites natalinos e celebram com canções, comidas típicas e bandas que tocam triângulo, sanfona e pandeiro. Além disso, o teatro popular é recheado com diferentes personagens e roupas típicas.

O reisado na comunidade de Brejo Grande, na Bahia, tem raízes em tradições que se remontam a séculos passados. Embora o ano exato de seu surgimento não seja conhecido, Maria Silva Gomes, conhecida como Dona Nenê, 97 anos, recorda que a primeira vez que presenciou a festa foi com um grupo de outro povoado. Segundo ela, o reisado, predominantemente masculino na época, era uma celebração maravilhosa. Com o sucesso da festa, a comunidade de Dona Nenê decidiu seguir a tradição de forma diferente, dando origem ao que ficou conhecido como reisado feminino.

Em entrevista com mãe e filha, Dona Nenê e Antônia, compartilham memórias semelhantes: “Mãe e Pai deixavam os filhos em casa e iam andando para Poços (povoado vizinho) dançar o reisado de lá”, relata Antônia. “Nós íamos caminhando para ver o reisado nos poços”, completa a mãe, refletindo a importância cultural da festividade.

Reisado feminino-O reisado feminino era composto  por personagens caracterizados de borboletas, uma rainha com a coroa, e  as mulheres de vestidos rodados, chamadas dentro do grupo de “ciganas”, todas as vestimentas eram produzidas entre as mulheres da comunidade. Zenailde Maria, conhecida como Zene, cordelista da região, produziu na época em conjunto com outros compositores, músicas para compor a festa. Em entrevista ela relembra como foi a experiência. “A gente fazia música de acordo com a cor da asa[...] que eram brancas, azul, roxo”, o grupo criava versos para cada borboleta sempre iniciando a canção com o verso “borboletas pequeninas saiam agora do rosal, eu vim aqui cantar o hino, hoje é noite de natal.”, cantado por Zenailde, que era cantora e uma das borboletas da performance.

O Reisado feminino seguia a tradição, celebrando os reis magos na igreja católica e, em seguida, indo de casa em casa, cantando músicas e dançando os reis. O objetivo era receber doações em dinheiro ou alimentos, como era o costume na comunidade. No entanto, o grupo que antes era grande e não tinha dificuldades em atrair novos participantes, hoje enfrenta grandes perdas na continuidade da tradição. As participantes relatam que, por ser uma festa de longa data, muitos dos integrantes que a mantinham viva já estão debilitados ou doentes, incapazes de participar ativamente. Como resultado, a tradição tem se perdido a cada ano, pois não encontra na juventude a força necessária para se manter viva

Reisado masculino-Com o reisado masculino a tradição não mudava, mas se adaptava aos seus personagens. A essência de ir de casa em casa cantar e dançar reis e ganhar recompensa continuava firme, Jonilson Cruz, conhecido na comunidade pelo apelido de Jonas, era o pulereiro, personagem responsável por recolher as recompensas em alimento, como farinha, feijão, frutas e ovos, ele diz quem nem sempre as pessoas queriam abrir a porta, então rapidamente entregavam as recompensas. Durante a entrevista ele conta como a festa era organizada, “Os cabeças já reuniam as pessoas que iam participar, muitas vezes tinha gente nova, e quem era veterano só trocava de personagem se quisesse, sem vergonha de se apresentar”, conclui Jonas. Sobre a confecção das fantasias, ele explica “cada um montava sua fantasia”. O cantador (nome dado às pessoas que cantavam as músicas de reis), afirma que o evento animava a comunidade, e que não havia dificuldades para encontrar participantes.

Sobre os personagens, não existia semelhança com o reisado feminino, da caracterização, até as músicas temáticas, havia mudança. Os personagens eram, o rato calango, a nega, a zabé, a mulinha, e os caboclos, sempre em trio ou quarteto. Os caboclos tinham a função de proteger os personagens que dançavam. Eles possuíam em suas fantasias um chicote, para punir quem ousasse tentar atrapalhar a performance dos participantes, “se ‘bulice’ com as figuras apanhavam, os caboclos batiam” conta Jonas . A fama desses personagens na comunidade era verdadeira, e causava medo quando eles corriam atrás das crianças em forma de brincadeira.

Os personagens possuíam músicas específicas para suas danças individuais, que aconteciam em uma roda, onde o personagem que se referiam tomava a posição de destaque. Os entrevistados disponibilizaram trechos das músicas de alguns personagens, listados abaixo:

Mulinha: “Abre a roda gente que a mulinha já vem (2x)
A mulinha olha eu, olha eu , olha você

A mulinha olha eu com os olhos de muçambê

A mulinha de ouro, ouro só (2x)

[...]”

Nega: “Toda vida trabalhei sempre morrendo de fome
agora vou vadiar quem vadia também come

Essa nega que tem marimbondo sinhá

É por cima, é por baixo, é por todo lugar

[...}

Rato: “O rato calengo como é caidor
caidor caidor

Corre no mato, como é caidor, caidor, caidor

[...]”

Zabé: “O entra, entra Zabé
Joga o teu lenço, quem quer? (3x)

[...]”

Era com essas composições, que a tradição se realizava na comunidade. Cantadores, tocadores e todos os presentes se reuniam em roda, entoando as músicas com alegria e entusiasmo, criando uma atmosfera única para celebrar o Dia de Reis. Assim, encerravam as celebrações de fim de ano, deixando no ar a energia contagiante que marcava o fim dos festejos natalinos.

O fim eminente de uma longa tradição-A tradição de Reis atualmente enfrenta um grande risco de desaparecimento. Com uma nova geração hiperconectada, o interesse dos jovens diminui a cada dia. Antônia Gomes desabafa: “Hoje, se a gente disser que vai formar o grupo, ninguém quer. Todo mundo é ocupado; o povo de hoje em dia só quer saber das redes sociais.” Os participantes expressam um grande medo do encerramento da tradição. Zenailde Maria, em entrevista, fala sobre seu receio: “Eles querem coisas novas, não querem preservar a cultura; a cultura acabou mesmo.” Ela acrescenta: “Alguns personagens (integrantes do grupo) morreram e não conseguiram evoluir.”

Neste ano (2024), a realização do evento ainda é indefinida, pois os integrantes estão com idade avançada e há desinteresse da população mais jovem. A tradição está se desgastando. Zenailde comenta: “Esse ano não sei se vão conseguir fazer o Reisado, mas era uma cultura, uma festa, uma coisa boa.” e desta forma, aos poucos cultura tão importante para a comunidade se perde com o passar dos anos, se perpetuando apenas nas afetivas lembranças dos mais velhos que  por muitas vezes não conseguem passar para seus filhos e netos algo tão valioso. Ao falar sobre o fim de sua tradição, dona Antônia cantarola trecho de música, que antes significava um “até breve” e  hoje, representa uma provável despedida definitiva, ela canta: “Adeus, adeus companheiro, nós já estamos chegando, nós já estamos a nos retirar, quem ficar com saudade, querendo mais pode nos acompanhar”, rindo lembrando do passado ela completa: “eu ‘tô’ até dançando aqui sozinha”. 

A festa de reis perde força no povoado, mas os participantes guardam com imenso carinho a memória daqueles que deram vida à tradição. Embora hoje já não estejam presentes, esses pioneiros deixaram um legado de alegria e dedicação, que até hoje molda os festejos de fim de ano e a celebração do ano vindouro. Os entrevistados, Antônia, Zene, Dona Nenê e Jonas, ao relembrar do grupo de reis, trazem à tona as figuras queridas de Orélio, Isaías, Pusquê, Belinho (Osvaldo), Julinda, Ercília e Rosa do Elmiro. Mesmo ausentes, suas histórias continuam vivas nas lembranças daqueles que insistem em manter a tradição.

Reportagem produzida pelas estudantes do 3° período de jornalismo em multimeios,  Rayssa Keuri e Mellyssa Cavalcanti.

estudantes do 3° período de jornalismo em multimeios,  Rayssa Keuri e Mellyssa Cavalcanti.

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