…que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.
Manoel de Barros, “Sobre importâncias”, do livro “Memórias inventadas – a Infância”.
Há uma singeleza nas palavras de Manoel de Barros, daquelas que nos desarmam e, desarmados, refletimos sobre nossas desimportâncias neste ano que se aproxima do fim, o ano que se aproxima do Natal. O Natal, uma festa que já foi pagã e hoje é religiosa, dialoga com tantas sutilezas, somos levados ao consumo desenfreado, a reatar amizades, a alimentar o perdão e a proclamar tréguas.
Uma das mais famosas é a trégua que aconteceu em 1914 na Primeira Guerra Mundial, quando os soldados chegaram ao que chamavam de “Terra de Ninguém” perto dos Campos de Flandres na Bélgica, havia chovido muito, fazia muito frio e foi acordado um cessar fogo para consertar as trincheiras e recolher os corpos.
Na véspera de Natal os alemães, seguidos pelos ingleses, começaram a cantar músicas de Natal, principalmente, Noite Feliz. Na manhã seguinte os alemães saíram das trincheiras e chamaram os britânicos, assim centenas de soldados se juntaram nas trincheiras e trocaram apertos de mão, chocolates, uísques, bolos, cigarros, riram, cantaram e descobriram que seus inimigos eram afortunadamente parecidos com eles próprios, nas idades, nos medos, nas brincadeiras e por uma fração de tempo a barbárie cedeu seu espaço para a confraternização.
Ocorre, aqui, que a trégua também nasceu da música, quantas vezes somos levados a associar o Natal com a música, principalmente a música coral? Desde os solstícios de inverno a música permeia essas celebrações e o cristianismo trouxe canções cristãs para a compor esse enredo, canções com histórias do nascimento de Jesus. Essas canções foram construindo, por séculos, melodias que aproximavam as pessoas, sejam pela trégua ou pela capacidade que essas melodias têm de unir vozes.
O Coralusp ressoa essas melodias em sua história, mas, entre dezenas de obras que são executadas todo ano durante o Natal, duas tem destaque importante no nosso repertório, duas melodias sustentam a história de um coral, que abraçou desde cedo, o popular e a música brasileira como parte importante de sua história, são elas, Boas Festas de Assis Valente e Natal de Tom Zé.
O genial Assis Valente, começou a compor sambas em 1930, já era protético na época e com sambas cheios de ironia e sensibilidade tornou-se o compositor predileto de Carmem Miranda, mas Assis vendia suas músicas para grandes intérpretes, porém só lhe sobravam dívidas. Tendo vivido uma infância pobre, ele compõe em 1932, Boas Festas, segundo o próprio Assis, ele estava sozinho em uma pensão em Icaraí, Niterói e na parede do quarto havia um quadro de uma menina com um sapatinho vermelho, olhando a imagem, Assis se sentiu profundamente triste, longe da família, afundado em dívidas e sem esperanças e assim, compõe:
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
Bem assim felicidade
Eu pensei que fosse uma brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem!
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem!
A letra escancara a desigualdade, a indiferença e a memória de um menino, que como tantos outros no Brasil, não encontrava no Natal o encantamento tão celebrado por todos.
Outra belíssima composição, essa menos conhecida, é Natal. de Tom Zé, o compositor baiano compõe aqui, sutilmente, a alegoria de um Jesus que sela seu destino na solidariedade, consolidando seu espaço nas grandes cidades e na periferia, dividindo a doçura do natal com o povo.
Vá chamar todo mundo pra comer.
Um pedacinho bem doce de Natal
Doces, vinho, chegaram do Belém, do Belenzinho
Do Pari, Vila Maria.
De Damasco e de São Paulo.
Cada um com sua Cruz.
Ao dar, a essas obras, um lugar cativo no repertório de Natal, o Coralusp dialoga com a sua essência, nascido em 1967, durante a ditadura militar, seu contexto histórico era o de encantamento da vida pela música, mas também do encorajamento das lutas políticas e sociais pela música.
Decidir o repertório de um concerto nunca foi simples, sempre carregou escolhas importantes, fazer de Boas Festas de Assis Valente e Natal de Tom Zé, seus hinos natalinos, é, para o Coralusp, a compreensão de que o Natal é uma potência de histórias e memórias nem sempre felizes, mas muitas vezes contestadoras e necessárias.
A professora e historiadora Jean Marie Gagnebin diz, em seu livro Limiar, aura e Rememoração: Ensaios sobre Walter Benjamin, que “se fossemos imortais, não precisaríamos escrever e, portanto, enquanto escrevemos, lembramos, mesmo, a nossa revelia, que morremos”.
E por nos reconhecermos mortais, almejamos o cessar fogo na guerra, a compreensão da nossa solidão no Natal, a solidariedade de um Jesus periférico que distribui doçuras e a beleza de um coro natalino. Experienciar a vida em sua plenitude, absorver através da arte a compreensão de um mundo, nem sempre belo e sublime, mas cheio de contradições e desigualdades, é o que nos torna mais humanos, apesar de e por causa de tudo isso, só nos resta celebrar, porque um dia, mesmo à nossa revelia, não estaremos mais aqui.
Por Christiane Souza, copista e arquivista musical do Acervo Coralusp
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