O filme Ainda estou aqui, baseado no romance de Marcelo Rubens Paiva, narra a história real de uma família de classe média atingida pelo terrorismo de Estado durante a ditadura militar brasileira. O ex-deputado Rubens Paiva é arrancado do convívio familiar, assassinado sem explicações, e a família sequer tem o direito de realizar seu enterro. O desaparecimento forçado de opositores era uma prática recorrente da ditadura, deixando famílias dilaceradas.
A história de Rubens Paiva simboliza não apenas a repressão brutal da ditadura, mas também a resistência e a persistência daqueles que lutaram para manter viva a memória e exigir justiça. Sua esposa, Eunice Paiva, lutou por mais de 25 anos para conseguir do Estado o atestado de óbito do marido e, com isso, o reconhecimento do assassinato do seu marido.
A obra, dirigida por Walter Salles, destaca-se pela direção, edição, fotografia e trilha sonora, sendo enriquecida pela atuação impecável de Fernanda Torres. Contudo, não se enganem: Ainda estou aqui não é um filme para entretenimento, mas um manifesto reflexivo e doloroso, com um forte apelo à memória e à resistência. Ao reconstituir a violência da ditadura militar e o impacto devastador na vida da família Paiva, o filme se transforma em um manifesto pela memória e pela resistência. Cada cena é construída para provocar questionamentos e desconforto, fazendo com que o público sinta a brutalidade da repressão e a ausência deixada pelos desaparecidos.
Acompanhamos o olhar atento de Eunice, que observa os tanques passando. Por meio desse olhar, o filme constrói um retrato visceral da violência que impregna cada cena, conectando passado e presente. Essa conexão torna-se evidente ao nos lembrar eventos recentes, como os ataques de 8 de janeiro de 2023 e a escalada de discursos autoritários no Brasil. Apesar da resiliência da nossa democracia, o filme questiona: quantos de nós permanecem verdadeiramente atentos a sua fragilidade?
O sentimento que emerge ao final do filme é intensificado pela música de Erasmo Carlos, que ecoa uma inquietação ética:
“Mas estou envergonhado / Com as coisas que eu vi / Mas não vou ficar calado no conforto acomodado como tantos por aí”.
Enquanto os créditos sobem, somos confrontados por uma dor profunda. O corpo inerte e a mente ativa revivem cada cena, cada expressão de Fernanda Torres e a grandiosidade de uma obra que é mais que cinema – é um manifesto pela reconstrução do Brasil. O filme clama por uma vigilância constante em defesa da democracia, conectando os ecos do passado às ameaças contemporâneas. Não há concessões ao conforto: o espectador é convocado a refletir sobre o papel de todos na proteção da liberdade e na construção de uma sociedade mais justa. Ainda estou aqui não é apenas uma narrativa histórica, mas um chamado ético e político, reafirmando que lembrar é resistir. Eu voltei de forma profunda à minha adolescência e à minha tenra militância pela democratização, Diretas Já.
Ao sair do cinema, a vergonha de um país que carrega os legados da escravidão, do genocídio indígena e da ditadura militar torna-se avassaladora. Como Veena Das nos alerta, a violência desce ao cotidiano, marcando corpos e memórias. O filme nos lembra de jovens arrancados de suas salas de aula e das vozes silenciadas pela repressão, trazendo uma reflexão pungente sobre o perigo da repetição. Recentemente, um ex-presidente chegou a homenagear um dos algozes da ditadura, reabrindo feridas ainda não cicatrizadas em tantas famílias.
Ao reviver histórias como a de Rubens Paiva, o cinema desafia a sociedade a refletir sobre a importância da democracia, da justiça e dos direitos humanos, convocando o espectador a se engajar ativamente na construção de um futuro que respeite a memória e aprenda com os erros do passado.
Assim, a arte não apenas relembra, mas mobiliza, transformando memória em ação.
Nesse contexto, a canção de Erasmo Carlos nos impulsiona: “Descansar não adianta quando a gente se levanta, quanta coisa aconteceu…“.
Precisamos encarar a realidade e nos comprometer com o bem-estar coletivo, recusando a submissão a ordens autoritárias que desrespeitam a dignidade humana.
No dia 13 de novembro, aconteceu uma mesa na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, sob a coordenação das professoras Cynthia Carneiro (Faculdade de Direito) e Vera Navarro (FFCLRP), com pessoas que sofreram de formas diferentes a ditadura militar, com destaque para Amelinha Teles.
Em 1972, Amelinha e sua família foram presos pela Operação Bandeirante (Oban), um órgão repressivo que se tornou parte do DOI-Codi. No período em que esteve presa, Amelinha foi submetida a torturas físicas e psicológicas intensas, incluindo humilhações sexuais e ameaças feitas na presença de seus filhos, que na época tinham apenas 5 e 4 anos. Após a redemocratização, Amelinha se tornou uma figura proeminente na luta por memória, verdade e justiça. Ela ajudou a fundar a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e continuou a atuar na defesa dos direitos humanos. Sua história também ganhou destaque na Comissão Nacional da Verdade, que trouxe à luz as atrocidades do regime e buscou responsabilizar os culpados.
A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos foi criada em 1991, com o objetivo de lutar pela verdade e pela justiça em relação aos crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985). A comissão surgiu a partir da mobilização de familiares de vítimas do regime militar, que haviam sido mortas ou desaparecidas forçadamente, e teve um papel central na denúncia das violências do Estado durante aquele período. Essa comissão deu origem a outros movimentos, como a Comissão Nacional da Verdade, que foi criada em 2011 no governo Dilma Rousseff, para investigar e documentar as violações dos direitos humanos durante a ditadura. A presidenta havia sido presa pela ditadura militar em 1970, quando tinha 22 anos, e passou quase três anos encarcerada, durante os quais foi torturada.
É importante destacar a importância da presidenta Dilma na construção da Comissão Nacional da Verdade, pois esta resultou em um relatório final, entregue em 2014, que documentou cerca de 400 casos de desaparecimentos forçados e mais de 300 casos de mortes violentas durante a ditadura. O relatório também apontou as responsabilidades do Estado, das Forças Armadas e das agências de repressão pela violação de direitos humanos e sugeriu medidas de reparação para as vítimas e seus familiares.
O terrorismo de Estado segue matando pretos, indígenas e ativistas por direitos humanos. O Brasil é um dos países que mais mata ativistas de direitos humanos no mundo, especialmente aqueles que defendem questões relacionadas à terra, ao meio ambiente e aos direitos de povos indígenas. Esse cenário tem sido reiterado por relatórios de organizações internacionais, como a Global Witness, que monitora crimes contra defensores de direitos humanos.
Os assassinatos de ativistas no Brasil estão intimamente ligados a conflitos fundiários, à expansão do agronegócio, ao garimpo ilegal e à exploração madeireira. Muitas das vítimas são líderes indígenas, quilombolas, ambientalistas ou pequenos agricultores que resistem à invasão de terras protegidas ou lutam contra o desmatamento. Os povos indígenas estão entre os mais atingidos, como exemplificado pelo caso de Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, assassinados em 2022 enquanto investigavam crimes na Amazônia.
Revisitar a história é um ato essencial para consolidar a democracia e prevenir retrocessos. Conhecer e compreender os erros do passado, como as atrocidades cometidas durante a ditadura militar brasileira, é a base para construir uma sociedade que valorize a justiça, a liberdade e os direitos humanos. O esquecimento ou a negação desses episódios abre espaço para a repetição de práticas autoritárias e a perpetuação de desigualdades estruturais.
É fundamental valorizar filmes, documentários, livros, aulas que nos convoquem a manter vivas as histórias das vítimas e das resistências, a exigir reparação para os que sofreram e a garantir que crimes de Estado jamais sejam tolerados novamente.
Diante das ameaças contemporâneas à democracia e aos direitos humanos, o compromisso ético e político de cada indivíduo se torna indispensável.
O filme nos chama à ação: a não aceitar o silêncio ou a apatia, mas a nos levantarmos pela defesa de valores fundamentais. Ele nos lembra que a democracia não é um dado, mas uma conquista contínua, e que cabe a cada geração o dever de protegê-la.
Que o filme Ainda estou aqui nos instigue pela luta e pela preservação da memória, e pelos direitos humanos. Que o filme nos inspire a transformar a indignação em ação, a vergonha em mudança e a memória em resistência. Que possamos, juntos, construir um país no qual não haja silenciamentos e violências.
Por Francirosy Campos Barbosa, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP
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