Bets exploram lacunas para manter operação no Brasil, por meio da Loterj e de vitórias em tribunais

23 de Oct / 2024 às 05h04 | Variadas

A tentativa do governo de acelerar o processo de regulamentação do mercado de apostas trouxe à tona lacunas no arcabouço desenhado pelo Congresso, com chancela do Ministério da Fazenda.

Ainda antes de o mercado regulado começar a funcionar de fato, no próximo 1º de janeiro, bets já invalidaram decisões da Secretaria de Prêmios e Apostas por meio de recursos nos estados, na Justiça e pela compra de empresas licenciadas.

A consequência mais clara disso foi o salto nos pedidos de licença na Loterj (Loteria do Estado do Rio de Janeiro). Até 17 de setembro, quando o governo anunciou que bloquearia neste mês os sites que não tivessem solicitado a permissão federal ou detivessem uma licença estadual, havia 20 bets à espera de aprovação no estado. O número subiu para 77 na última sexta (18).

A loteria fluminense se movimenta para se firmar como alternativa nacional de licenciamento de bets, sob contestação do governo. A AGU (Advocacia-Geral da União) foi à Justiça para limitar a operação da Loterj ao território fluminense.

A Loterj conseguiu, no dia 1º de agosto, liminar na Justiça Federal do Distrito Federal para operar em todo o país. No dia 5, o governo conseguiu a derrubada da decisão. Contudo, a autarquia fluminense diz que segue a faturar as apostas no Rio de Janeiro e, por isso, estaria em situação de regularidade.

O resultado da disputa judicial da União contra Loterj e as empresas de apostas, segundo advogados consultados pela reportagem, vai definir como funcionarão, na realidade, as regras, eleitas pela Fazenda como a principal ferramenta na tentativa de combater a lavagem de dinheiro, a dependência e a propaganda abusiva ligadas às bets.

A AGU afirmou que só vai se pronunciar sobre o assunto nos autos do processo. Nos documentos, o órgão cita um risco de competição predatória entre os entes federados para receber os sites de apostas, caso a União perca no imbróglio contra a estatal fluminense. Nesse cenário, os atores teriam incentivos para aprovar leis e portarias mais lenientes com crimes financeiros para atrair casas de aposta.

A estatal carioca, por exemplo, não requer certidões de “nada consta” de todos os envolvidos na rede societária dos sites de apostas.

O governo, por sua vez, exige documentações de todas as pessoas ligadas às empresas controladoras e controladas pelo CNPJ que deseja receber a outorga. Pede ainda um plano de negócios detalhado, com projeções financeiras e demonstrações contábeis específicas.

Em evento organizado pelo grupo Lide, de João Doria, na última sexta, o presidente da Loterj, Hazenclever Lopes Cançado, afirmou que a Loterj já recebe pedidos de licença de empresas de vários estados e até do exterior. Por isso, vai lutar para garantir que as licenciadas atendam jogadores de todo o país, faturando as apostas no Rio de Janeiro.

“É a mesma lógica dos ecommerces, em que a coleta do imposto ocorre no estado do comerciante”, disse Cançado à reportagem. A licença da autarquia fluminense teria validade global, como ocorre com as autorizações de Malta, Curaçao e Anjouan, adotadas, na Europa, por exemplo, para fugir de regulações nacionais.

O governo federal, por outro lado, diz que a lei exige, para evitar lavagem de dinheiro, um sistema de georreferenciamento da origem da aposta. Essa tecnologia, adotada no Paraná e no Maranhão, permitiria restringir a atuação das bets licenciadas nos estados aos seus respectivos territórios, como define a lei nº 14.790 de 2023.

Cançado contra-argumenta que o STF (Supremo Tribunal Federal), ao julgar três ações, garantiu aos estados o direito de concorrer com a União, até no âmbito regulamentar. Para ele, a atuação do governo contra a autarquia carioca visa concentrar a arrecadação das apostas, dando prosseguimento ao histórico de monopólio dos jogos pela Caixa Econômica Federal.

No setor, porém, prevalece a avaliação de que há uma diferença de abordagem entre a Fazenda e a Loterj.

Empresários do ramo avaliam que das mais de 200 empresas que pediram permissão para atuar com apostas, uma ou duas dezenas devem suportar as regras federais e a competição no longo prazo.

A loteria fluminense, por sua vez, deve licenciar mais de 50 empresas, operantes em um cenário menos complexo e mais inclinado a deixar as questões criminais sob os cuidados da polícia. Funcionários da própria Loterj dizem, reservadamente, que a orientação dos superiores é de aprovar os pedidos, desde que requisitos mínimos sejam atendidos —11 empresas até agora falharam por não conseguirem entregar a papelada exigida e 12 já têm permissão.

O caso da patrocinadora do Corinthians, Esportes da Sorte, mostra as principais brechas regulatórias já exploradas pelas bets.

A empresa foi barrada na lista inicial da Fazenda de bets com permissão temporária para atuar até o fim do ano, mesmo tendo cumprido os requisitos de solicitação de licença federal até 20 de agosto e ter informado a Fazenda das marcas operadas até o último dia 30.

A SPA nunca se pronunciou oficialmente sobre o caso, mas funcionários da secretaria afirmam, sob condição de anonimato, que as investigações em curso no Pernambuco, na operação Integration, foram o motivo do veto.

A bet, conhecida também pelos acordos com a influenciadora Deolane Bezerra, driblou a decisão administrativa da secretaria ao comprar o site Apostou.com, já licenciado pela Loterj. Assim, obteve em menos de uma semana a licença para operar no Rio de Janeiro, e, por consequência, no resto do país até o fim do ano.

A Esportes da Sorte diz que a troca de posse da licença ocorreu “após avançada análise de documentação pela Loterj”.

O processo, porém, levou menos de uma semana, ao passo que a Fazenda pede cinco meses de prazo para avaliar toda a documentação necessária para conceder uma licença.

O advogado especializado Pedro Porcaro afirma que a compra de uma bet licenciada, em âmbito federal, requereria revisão dos documentos de todas as pessoas da cadeia societária. “Em outros setores, é comum adquirir outras empresas para obter licenças ou credenciais, mas isso requer um processo extenso de adequação.”

A Fazenda diz que a emissão de autorizações e posterior fiscalização em cada estado é de responsabilidade da autoridade local.

A Esportes da Sorte, no último dia 16, ainda conseguiu reverter, na Justiça, a restrição da SPA. Desde então, a empresa consta na lista das que têm autorização temporária para atuar até o fim do ano por ter cumprido os requisitos da secretaria. O site Megapix obteve decisão liminar da Justiça Federal do DF no mesmo sentido.

A bet de Deolane Bezerra teve ação semelhante negada pela 14ª Vara Cível Federal de São Paulo, em um indicativo da situação de incerteza.

Em um terceiro fronte de conflito judicial para a União, diversos setores da economia tentam invalidar, em uma ação no STF, a lei que regulamentou o mercado de apostas. Isso, por si, não jogaria as bets na ilegalidade.

A AGU alertou, em petição destinada ao ministro responsável pela causa, Luiz Fux, sobre o risco do Brasil seguir como sede do atual mercado cinzento de apostas, se o STF (Supremo Tribunal Federal) acatar o pedido da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo para invalidar a regulação.

O correto, diz a instituição, seria invalidar a lei sancionada por Michel Temer que liberou as plataformas de apostas no fim de 2018.

Política Livre/Foto: Joédson Alves/Agência Brasil/Arquivo

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