Décadas atrás, morria Pierre Gripari, notável escritor francês, cujos romances, ensaios, peças de teatro, contos e poesias tornaram-se populares entre jovens e adultos na França. Suas obras constituíram parte do acervo das bibliotecas das escolas; escreveu também para as crianças, “a fim de ajudá-las a compreender a realidade em que viviam”.
Para ler no original autores que admirava (Grimm, Hoffmann, Richter, Afanassiev, Gogol), estudou alemão e russo; recebeu o prêmio Voltaire pelo conjunto de suas obras (Contes de la Rue Broca; Lieutenant Tenant; Le Conte de Paris e outras). Interessando-se também pelas grandes obras de Teologia, publicou uma antologia filosófica (L’Évangile du Rien).
Apesar de sua celebridade, Gripari viveu uma vida simples. Desde sua infância manifestou seu gosto pela leitura (De Mérimée, Dickens, Jack London, Kipling) e recitava em família, nas ocasiões festivas, as estórias curtas que escrevia. Seus pais, ele grego, ela francesa, eram politicamente radicais e também adeptos do espiritismo (sua mãe praticaria a “mediunidade”).
Um dos seus contos, O partido dos mortos, é um convite à reflexão sobre os rumos do mundo atual: nele relata como toda uma população passa, insensivelmente, da condição de vivos para mortos, que, ambulantes pelas ruas, assumem o poder e passam a determinar as políticas públicas convenientes para eles (como a acelerada expansão dos cemitérios).
No conto, o primeiro-ministro, ao ser indagado, considerou a situação não só normal, mas ainda muito pouco: “Os vivos são apenas uma minoria, pense em tudo que está morto desde a fundação da cidade!”. Mas o presidente da República reagiu prontamente: a partir daquele momento seria proibido morrer. Mas já era muito tarde para reverter a situação.
“Você não está querendo morrer, está?” perguntavam a alguém. “Não, não, claro que não”. “Sabe que é proibido, não sabe?” Sabia, sabia. Viravam as costas por meio segundo e mais um engrossava o cortejo dos mortos. Indignado, o presidente da República convocou novamente o primeiro-ministro (as câmaras de vídeo não dariam conta de vigiar todo o mundo).
“O senhor cederá à força”, respondeu o primeiro-ministro. “À força de quem?” “À nossa, pois somos os mais numerosos”. E, sorrindo, com um ar vago, apontou para a janela. O presidente levantou os olhos e, surpreso, percebeu que o primeiro-ministro também era um morto. O partido dos mortos o enviara ao poder para dominarem o país.
Pela rua, um cortejo de esqueletos marchava em silêncio; alguns traziam cartazes: “Todo o Poder para os Mortos!” As pessoas, ainda vivas, nas calçadas, tentavam falar com algum morto conhecido, mas o interpelado as olhava com ar vago, distraído, sem diminuir o passo; depois virava o rosto. Poderíamos fazer alguma analogia com os tempos atuais?
“Mortos” (que se consideram “vivos”) promovem o “enterro” dos outros, empregando desde a força bruta até formas sutis de persuasão, manipulação ou cooptação para prevalecerem política, econômica e culturalmente. Mestres da dissimulação, “estão sempre prontos a condenar as armadilhas que os apanham, mas não a si mesmos” (William Blake).
Entrincheirados nas estruturas interligadas de poder em toda a sociedade, em instituições políticas, econômicas e culturais, apelam ao setor privado para solucionar a miríade de problemas por eles mesmos criados; think tanks e lobbies encarregam-se de anular iniciativas que contrariem seus interesses.
Expressariam a chamada “política do ventre”, o compadrio entre as esferas pública e privada, uma forma de governo marcada pela fusão dos negócios privados e públicos, tendo como consequência a não distinção entre mercados legais e ilegais, a proliferação do suborno e o uso da posição conquistada para o próprio enriquecimento.
Apoderando-se, de forma avassaladora, de postos-chave da política, da economia, dos meios de comunicação, da cultura e mesmo da educação, pisoteiam sobre valores, dizimam territórios e espécies animais e vegetais e destroem todo o planeta. Representam o afluente e organizado Partido dos Mortos, cujo domínio se estende por toda a Terra.
Anos atrás, um movimento de restauração de valores (caracterizado pelo “rearmamento moral”, condição para o “desarmamento material”), afirmava que as pessoas “não poderiam viver torto e pensar direito”: incapazes de dizer “não” às suas paixões, não podem esperar que as multidões digam “sim” a seus lamuriosos apelos.
Diante dos holocaustos que marcam a história da humanidade, permanecemos passivos, confusos e inertes; “nossos pecados são tenazes, nossos arrependimentos são frágeis, pagamos grosseiramente nossas promessas e ingressamos contentes no caminho lamacento, acreditando, através de prantos vis, lavar todas as nossas máculas” (Charles Baudelaire).
A crise atual assemelha-se a um novelo de fios emaranhados; ao tentar desembaraçá-los, mais intrincada torna-se a meada. Os “problemas” são reduzidos às bolhas fragmentadas de superfície, ocultando graves anomalias no bojo do caldeirão efervescente; há uma exclusão de princípio: diagnóstico redutor, projetos segmentados, agravamento generalizado da situação.
A capacidade de escolha e decisão é duplamente afetada: face às “demandas”, pelo empobrecimento cultural, pela perda de sensibilidade e capacidade crítica para distinguir, além dos bens de consumo, o que seria melhor para a vida; face às “ofertas”, por um quadro pré-estabelecido de opções, orquestrado pelas estratégias de marketing e propaganda.
Enquanto modelos de desenvolvimento privilegiam a omnipotência da tecnologia, espaços públicos, cidadania, trabalho, educação, convivência e lazer ficam à mercê dos interesses que os exploram, carências de toda ordem são “substituídas” por simulacros de consumo, busca-se segurança específica em condomínios privados às custas da insegurança geral.
A “inclusão”, nesse sistema, gera um círculo vicioso: os novos “incluídos” passam a gozar das “benesses” oferecidas pelo próprio sistema que os excluiu anteriormente e debitam aos demais os problemas associados às desigualdades, ao clientelismo, às diferenças de origem, sem questionar as estruturas políticas e econômicas responsáveis pelas exclusões.
Visões transformadoras vão além de um repertório técnico ou instrumental, futuros alternativos exigem um novo conceito de “normalidade”, além da “reparação” ou do “conserto” de coisas ou pessoas. não se trata de um “up-grade” tecnológico, mas de um novo patamar, de novos paradigmas e formas de compreender, sentir, agir e estar no mundo.
A degradação da cultura é mais grave do que a ausência de direitos prescritos. Direitos civis, políticos, econômicos ou sociais necessitam de uma cultura que os sustente, sob pena de figurarem apenas no papel. Códigos, estruturas e instituições, direitos e deveres estatuídos, nada podem diante do formidável jogo de cartas marcadas no mundo de hoje.
O “direito de tocar piano” não subsiste se não houver liberdade para tocá-lo, isto é, se ninguém aprendeu como fazê-lo e se ninguém tem acesso ao instrumento para tocá-lo. Liberdade não é apenas a ausência de coerção externa (liberdade “de”), mas é a possibilidade de agir, escolhendo o que é melhor para si e para os demais (liberdade “para”).
A solidariedade que o mundo de hoje exige não é a dos laços de sangue, de compadrio, de interesses: os indivíduos só poderão se emancipar se estiverem dispostos a trabalhar e cooperar para a emancipação da humanidade; esta, por sua vez, não se pode auto emancipar sem que também promova a emancipação dos indivíduos que a compõem.
A existência humana depende de um campo dinâmico, configurado por um mundo subjetivo (sujeitos), por um mundo de relações (grupos primários), por um mundo dos homens (sociedade) e por um mundo circundante (ambiente). Estar no mundo implica dimensões que se entrelaçam e se complementam: íntima, interativa, social e biofísica.
O que está em jogo é a capacidade para responder adequadamente aos desafios representados pela missão de estar no mundo, a comunidade humana não é fechada em si mesma, os problemas (e sua eventual solução) dependem da teia de relações que estabelecemos com os demais, com a natureza, com forças além do nosso controle.
Não basta desenvolver o conhecimento, importa o processo pelo qual a ele se chega e em que e como é empregado. Ao tentar colocar remendos em tecidos rotos, deixa-se intacto um sistema em que poder é domínio e exploração; riqueza, exploração predatória; crescimento, expansão ilimitada; trabalho, especialização compartimentalizada.
Em sistemas que tecem a própria mortalha e buscam manipular e controlar, podemos, zumbis ou “mortos-vivos” (como no conto de Pierre Gripari), ser coparticipantes, em uma dança macabra, de toda sorte de malefícios, ou então assumir uma posição crítica e transformadora diante da imensa engrenagem política, econômica e cultural que envolve pessoas e coletividades.
Duramente afetados pelas guerras, desastres e flagelos, ao ritmo orquestrado pelas chamadas “culturas de pobreza” e “culturas de riqueza” (ambos lados da mesma moeda), os homens (e mulheres) de hoje têm apenas duas opções: ou engrossam o cortejo dos considerados “mortos-vivos” ou resgatam a condição de seres conscientes e coletivamente responsáveis.
Por André Francisco Pilon, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP
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