Em Metodologia da Pesquisa Científica, publicado em 1968, o filósofo Asti Vera alertava para a centralidade do método de investigação nas ciências em geral. Nove anos depois, em Como se faz uma tese, o ensaísta Umberto Eco advertia que a elaboração de uma tese (também) poderia consistir na elaboração crítica de uma experiência. O que esses e diversos manuais posteriores guardam em comum? A hipótese de que um dos maiores entraves ao pensamento crítico é o uso irrefletido do senso comum – esteja ele pautado em ideias pré-concebidas; dados não verificados; ou em falácias, especialmente aquelas irradiadas de modo intencional e leviano.
Talvez seja útil recordar essas premissas, tendo em vista os ataques infundados que incertos setores da sociedade brasileira desferem contra o nome e a obra de Paulo Freire (1921-1997), a despeito de o educador ser reconhecido mundialmente. Pedagogia do Oprimido se situava entre as obras de Asti Vera e Umberto Eco: foi escrito em 1968, interditado pelos censores da ditadura durante seis anos, logrando a primeira edição somente em 1974. Desde as primeiras linhas, Paulo Freire recorre ao método dialético, a começar pelo depoimento de um operário que cursara uma de suas aulas: o educando reconhecia que ao se descobrir ingênuo começara a se tornar crítico.
No prefácio redigido em Santiago (Chile) durante o outono de 1968, o pensador brasileiro afirmava que sua obra não seria compreendida ou aceita por sectários reacionários porque eles receiam enfrentar, temem ouvir; receiam “o desvelamento do mundo”; temem “o encontro com o povo”. Daí o pressuposto de que a relação entre opressores e oprimidos era trespassada por tensões. O poder dos oprimidos residiria na união para se libertar; o poder dos opressores consistiria em expressar “falsa generosidade”.
Solidariedade contra antagonismo; compaixão contra sadismo; emancipação contra dominação; educação problematizadora contra educação passiva. A questão se torna ainda mais complexa quando o oprimido “adere” à postura do opressor, ou seja, quando almeja “não a libertação, mas a identificação com o seu contrário”. Essa tentativa de se ver representado no discurso e nas ações do opressor seria um sintoma da concepção fatalista de mundo, que pressupõe a imutabilidade da situação, devido ao destino, à natureza dos homens etc. Supostamente, essa visão estacionária e estática seria explicada por um “fatalismo, alongado em docilidade”, que, na verdade, resulta de “uma situação histórica e sociológica e não um traço essencial da forma de ser”.
Eis um dos vários pontos de contato entre Paulo Freire e Asti Vera, se quisermos distinguir senso comum de criticidade: “Para o pensar ingênuo, o importante é a acomodação a este hoje normalizado. Para o crítico, a transformação permanente da realidade, para a permanente humanização dos homens”. Por esse motivo, as decisões tomadas podem soar contraditórias, já que alguns realizam “tarefas em favor, uns da manutenção das estruturas, outros, da mudança”.
Contrariando certas figuras que insistem em depreciar autores e obras que sequer leram, em nenhuma das duzentos e cinquenta e três páginas de Pedagogia do Oprimido o leitor encontrará a defesa de uma relação doutrinária entre educador e educando. Ora, se o método freiriano é essencialmente libertador, não haveria contradição maior em supor que o educador advogasse em defesa do ensino dogmático. Decerto, esse tipo de falácia (que finge ser isenta e neutra) combina desfaçatez e má-fé. Prática recorrente nos seres incapazes de interpretar as diversas camadas do cotidiano; menos ainda de levar em conta outros modos de (r)existência.
Nesse e em outros casos, valeria a pena recordar outra importante lição de Paulo Freire, registrada em 1996: a incapacidade de escuta quase sempre impacta negativamente o ensino, pois a educação libertadora se pauta pelo efetivo diálogo emancipador e não pelo estímulo à conduta meramente concorrencial.
Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
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