Livro analisa a natureza na obra de Guimarães Rosa

01 de Aug / 2024 às 20h30 | Variadas

A relação simbiótica da obra de João Guimarães Rosa com o mundo natural é o objeto de estudo da bióloga e professora mineira Mônica Meyer.

Fruto de tese de doutorado apresentada na Universidade Estadual de Campinas em 1998, o livro “Ser-tão natureza: a natureza em Guimarães Rosa” foi publicado pela Editora UFMG em 2008 e teve duas reimpressões (a mais recente é de 2019).

Na apresentação, Meyer narra a emoção ao consultar o Arquivo Guimarães Rosa, sob guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, e ter acesso aos originais então inéditos de “A boiada”, com as anotações do autor sobre sua viagem ao sertão mineiro em 1952. “Coração de mineira disparava em sístoles e diástoles, semelhante ao voo do pica-pau descrito no diário de viagem”, compara. “Me sentia coletando pedras preciosas das Minas Gerais, distante geograficamente, mas tão pertin, naquele momento mágico, do coração.”

Dividido em quatro capítulos, o livro de Mônica Meyer oferece minuciosa e preciosa análise sobre a forma pela qual o autor incorporava o mundo natural em suas obras. “A natureza para Guimarães Rosa não se apresenta como um espetáculo ou uma coleção de aspectos naturais compondo um cenário ou um palco, onde se desenrola a aventura da viagem. O ambiente/sertão não está separado das pessoas, dos bichos, das plantas, e sim dentro de cada um, caracterizando o jeito de ser e de viver”, destaca a professora.

Para Mônica Meyer, as paisagens em “Grande sertão: veredas” são vivas e mutáveis, reconstruídas e recriadas internamente pelo narrador, Riobaldo, com conhecimento e sentimento. Ela afirma que a paixão de Guimarães Rosa pelo mundo natural se revela na forma poética de citar e descrever plantas, animais, rios, morros... “O espaço é esquadrinhado em quatro dimensões ligando os elementos do céu, da terra, da água e do fogo.” Flores, cores (o amarelo traduz a paixão do autor pelo cerrado, afirma Meyer), passarinhos, bois, até os tipos de capim que compõem a paisagem nos escritos do mineiro são descritos e analisados pela professora aposentada da Faculdade de Educação da UFMG.

Ao visitar a região, em 1993, ela chegou a entrevistar Manuelzão, um dos integrantes da comitiva de Rosa, e incluiu no livro um depoimento do vaqueiro que já chamava a atenção para as transformações no ecossistema.

“Hoje tudo é eucalipto (...). Aqui é a Vereda Grande. Na vereda tem só água que nasce na vereda. Mas assim mesmo, a areia daqui deste lugar vem com o trator limpa a vereda, limpa o eucalipto. A água da enxurrada carrega areia prá veredas vai entupindo as vereda. Vai indo até que as veredas acaba secando. Mas hoje não encontra quase nada, não. No meio do eucalipto não tem nada. Nem marimbondo gosta de eucalipto.”

Mônica Meyer lembra que ela e Manuelzão chegaram a se perder em meio aos eucaliptos perfilados “como um gigante”. “Em três décadas observo o avanço desenfreado e galopante do eucaliptal, a instalação do agronegócio com o uso de pivôs, a pulverização de agrotóxicos, a diminuição, assoreamento e morte das veredas”, lamenta. Mas ela também guarda boas recordações. “Me causou impacto a beleza das veredas ornada com buritizais de variadas tonalidades, orquestrada pelo som dos ventos, das araras, das maritacas, das águas: exercitei o olhar e descobri ‘buritis meninos’, ‘folhas que se dedeiam’”, lembra. Leia, a seguir, a entrevista da autora de “Ser-tão natureza” ao Estado de Minas.

O que diferencia Guimarães Rosa de outros autores brasileiros do século 20 na representação do mundo natural?

A natureza é descrita em arranjo caprichado, transformada em personagem viva, dinâmica e animada rebrilhando na luz e na escuridão plena de significados e recados. Guimarães Rosa ultrapassa uma concepção reducionista, estreita e imediatista que concebe a natureza apenas como cenário, recurso natural e mercadoria. A proximidade, intimidade e aprendizado do sertanejo com mundo natural resultam um processo de integração entre cultura e natureza, que atravessa o ser-tão. O escritor se ocupa em revelar em sua obra que o sertão não é apenas um espaço biogeográfico, de uma riqueza extraordinária em cultura popular, de um patrimônio natural ancestral e exuberante. O ser-tão é também metafísico, traduz a linguagem animada dos seres vivos, dos ventos, das águas, da terra. A natureza concebida e representada como um ritual de passagem para alcançar a espiritualidade e a transcendência.

O que é mais notável na forma que Guimarães Rosa representa a natureza em “Grande sertão: veredas”?

João Guimarães Rosa apresenta uma cartela de cores, cheiros, sons, luzes e sombras do cerrado, bioma presente em grande parte do Brasil. “Grande sertão: veredas” traduz perfeitamente essa natureza “belimbeleza”, viva e pulsante. O escritor descreve a diversidade da flora e fauna irmanada, imbricada, integrada aos rios, mares de montanhas, morros, serras, chapadas, grotas, céu de nuvens e constelações. A narrativa flui com melodia e delicadeza filosófica, estética e poética que transporta o leitor para um uni-verso móvel, sinestésico, que o faz sentir e imaginar aquele microcosmo sertanejo criado, ruminado de recordações, experiências, conhecimento e sentimento em puras misturas. A presença de onomatopeias é recorrente e a leitura em voz alta traz encantamento e facilita a compreensão do texto.

 

Como as percepções e impressões da viagem de Guimarães Rosa acompanhando uma boiada no início dos anos 1950, anotadas em cadernetas, se refletiram em “Grande sertão: veredas”?

As anotações da viagem ao sertão de Minas em 1952, acompanhando a Boiada, foram recriadas no romance “Grande sertão: veredas” e principalmente em “Corpo de baile”, publicado também em 1956. Há múltiplas e distintas referências aos bois, paixão do escritor. Os passarinhos e as aves em geral ganham um destaque especial em refinados detalhes, assim como os insetos. Os lugares por onde a Boiada passou pousou são representados. Por exemplo: o encontro emblemático entre Riobaldo e Reinaldo no porto do Rio-de-janeiro, afluente do Rio São Francisco. A descrição das canoas, os sacos de arroz atados com folha nova de buriti e o pau d’óleo confere com as notas do dia 14 de maio de 1952, registradas durante a permanência na Fazenda da Sirga. Outra fazenda, a Santa Catarina, localizada em Andrequicé e pouso da comitiva da Boiada em 21 de maio de 1952, adquire relevância no romance, pois marca o encontro amoroso entre Riobaldo e Otacília. A identificação da flor caeté, de cor branca perfumosa, metaforicamente representa e sela um compromisso entre eles. O expressivo, e significativo, apelido de casa-comigo é a resposta que Otacília dá a flor. Em “Grande sertão: veredas”, o tempo e as ações transcorrem em sintonia com o calendário ecológico, as estórias e o saber tradicional do sertanejo se entrelaçam na trama do texto.

O livro chama atenção para o fato de Guimarães Rosa revelar, em suas anotações no início dos anos 1950, preocupação com desmatamento. Poderia citar como o escritor explicitou essa e outras questões ambientais?

Antes de chegar à Fazenda da Sirga, de onde saiu a Boiada, Guimarães Rosa observa o desmatamento em marcha e a presença de eucalipto. Ele manifesta sensibilidade e preocupação pela destruição depredatória que avança sem interesse em conhecer a biossociodiversidade do cerrado. Retoma o tema no conto “As margens da alegria” que conta, pelo olhar de uma criança, as impressões sobre a construção de uma grande cidade, que mesmo não nomeada sabemos se tratar de Brasília. O escritor se ocupa principalmente em revelar e exaltar em sua obra literária a natureza entrelaçada com a cultura popular. O sertão não é um deserto, árido, inóspito e violento, essa visão estereotipada que predomina no senso comum. Os gerais, esse sertão móvel regido pelo calendário da natureza com seus ciclos de seca e chuva, de sons e silêncios, beleza e pobreza, cheio de contrastes, de vida e embates. O escritor nos convida a sair de uma inércia mental, do óbvio e do senso comum para o exercício da observação, da aprendizagem, de uma viagem pelo sertão físico e metafísico, a fazer uma travessia.

Jornal Estado de Minas Foto arquivo Ney Vital

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