O ritmo das águas sempre conduziu a vida de comunidades indígenas na Amazônia. Por isso, a alteração dos ciclos de enchente e vazantes dos rios por eventos climáticos extremos tem causado impactos nas esferas social e econômica desses grupos, com prejuízos na alimentação, na forma de se locomover e até mesmo no tempo para estudar.
Antes um fenômeno natural da vida da região, o período de seca nos últimos anos foi tão prolongado que encurtou o calendário escolar, interrompeu o processo de aprendizagem das crianças e deixou professores dessas escolas sem trabalho e salário por meses.
"O nosso calendário escolar depende da vazão dos rios, porque só conseguimos chegar à escola de barco. Cada ano é de um jeito, sempre foi assim. Mas, nos últimos dois anos, as aulas tiveram que acabar mais cedo. Muito mais cedo do que em qualquer outro ano", conta Valdenilza Maia, 37, diretora da escola indígena Maria do Carmo, em Careiro, município na região metropolitana de Manaus.
A escola fica em um igarapé no Paraná do Castanho Mirim, um braço do rio Castanho. A única forma de chegar até ela é com pequenos barcos, que em tempos normais conseguem navegar pelo curso d'água. Já nos períodos de seca, o trajeto à escola se torna intransponível, tanto por embarcações quanto a pé.
"Era comum conseguir ter aula até o fim de outubro. Mas, em 2022, a seca chegou mais cedo e tivemos que encerrar na segunda semana do mês. No ano passado, só fomos até o dia 6. Para esse ano, com o pouco de chuva que tivemos, acho que as aulas acabam ainda em setembro", afirma ela.
"Choveu muito pouco esse ano, então o rio deve secar ainda mais rápido. Assim, vamos para o terceiro ano seguido em que o ano letivo é encurtado, mais um ano que essas crianças ficam com menos aula."
A escola tem 60 alunos, que estão matriculados do 1º ao 9º ano do ensino fundamental, mas conta com apenas cinco professores. Assim, a partir do 4º ano as turmas se tornam multisseriadas, ou seja, juntam crianças de idades e séries diferentes.
"O desafio para o aprendizado é imenso. Os alunos têm um único professor, que é responsável por dar todas as oito matérias obrigatórias. Além disso, eles têm menos tempo de aula que o restante dos alunos do país", diz Odair José de Souza, 50, professor de uma das turmas.
Ele conta que a maior dificuldade dos alunos é com a alfabetização. "Não há tempo suficiente para as crianças consolidarem o que aprendem, porque o ano letivo é muito curto e está ficando ainda menor. Elas terminam o ano sabendo ler e escrever, mas esquecem boa parte porque ficam muitos meses em casa. Todo começo de ano, eu preciso ajudá-las a lembrar novamente como ler e escrever", conta.
"É frustrante para nós, como educadores, ver as crianças aprenderem e depois esquecerem. E não é por falta de vontade delas, mas por não haver condições nem tempo para o aprendizado fixar na memória. Não é que eles perdem todo o aprendizado, mas regridem por ficar muito tempo sem aula", diz a diretora.
Além de ficarem quase cinco meses sem aula, as crianças também não têm em casa livros ou materiais escritos para treinar enquanto estão longe da escola. Os professores enviam lições para as férias e tentam desenvolver atividades de forma remota, mas esbarram na dificuldade de conexão da região.
"Fazemos um esforço para que elas tenham alguma atividade durante esse período de seca, mas nem sempre elas têm acesso a internet. Com a seca, os alunos também acabam ficando sem tempo para estudar, porque precisam buscar uma fonte de renda para ajudar os pais", diz a diretora.
Como o tempo de aprendizado é escasso, os professores priorizam nas aulas aquilo que poderá ser mais usado pelos alunos fora da escola. No dia em que a Folha esteve na unidade, Souza ensinava para as crianças do 4º e 5º ano as operações de soma e subtração. "Diante das condições que temos, eu me esforço e fico feliz quando eles aprendem a fazer contas, quando entendem o que estão lendo."
O ano letivo mais curto também prejudica os professores. O município de Careiro está há mais de 14 anos sem fazer concurso público para docentes, assim quase todos são contratados de forma temporária.
"Acaba o ano letivo, acaba o nosso contrato e ficamos sem receber. Se o ano termina mais cedo por causa da seca, são mais meses sem receber salário. O jeito é ir guardando o que dá ao longo dos meses, eu também ajudo meu irmão a vender farinha para complementar a renda desses meses que fico sem receber", conta Souza.
As dificuldades da escola Maria do Carmo, assim como a de centenas de outras unidades indígenas, ficam praticamente invisíveis nos levantamentos e avaliações que retratam o cenário educacional do país.
Por ter poucos alunos por série, a escola não é elegível para o cálculo do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), principal termômetro da educação básica.
Um levantamento feito pelo QEdu, em parceria com o Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional), sugere que essa é a realidade da maioria das escolas indígenas que ficam na Amazônia Legal. O estudo identificou que nessa região apenas 11% das unidades escolares de zonas rurais têm o Ideb calculado para os anos iniciais do ensino fundamental. E apenas 17% para os anos finais.
"Quase 90% dessas escolas não são avaliadas, o que significa que o poder público não as acompanha. E assim, não sabe quais são as dificuldades enfrentadas para poder formular políticas que as ajude a superá-las", diz Luana Bunese, coordenadora do QEdu.
O levantamento mostra ainda que o desempenho escolar nessa região é inferior à média nacional. Em 2022, por exemplo, o país tinha 51% de seus estudantes do 5º ano com aprendizado adequado em português. Na Amazônia Legal, essa proporção cai para 37% e chega a 34% para a população indígena.
No 3º ano do ensino médio, apenas 1% dos alunos indígenas da Amazônia Legal atingem o nível considerado adequado em matemática.
Segundo o Censo da Educação Básica de 2022, o país tinha 129.574 crianças indígenas matriculadas nos anos iniciais. O número de matrículas cai para 96.049 nos anos finais e despenca para 44.103 no ensino médio -ou seja, apenas um terço chega na última etapa da trajetória escolar.
Também não há no país um esforço para identificar quantas escolas têm tido o ano letivo afetado por causa das estiagem ou outros eventos climáticos extremos. No fim de setembro do ano passado, por exemplo, o governo do Amazonas estimou que cerca de 2.200 alunos ficaram sem acesso às escolas durante a seca.
Para Thiago Cavalli, diretor e fundador da ONG Casa do Rio, a ausência de monitoramento e ações para garantir condições adequadas de aprendizado para as crianças indígenas coloca em risco avanços que essa população alcançou.
"Vimos nos últimos anos o aumento de indígenas nas universidades, a ocupação desses povos em espaços de decisão das políticas públicas. Mas não conseguimos garantir que essa população tenha acesso ao direito básico de estudar", diz.
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