Francisco Buarque de Hollanda fez 80 anos no último dia 19 – e só quem esteve em outra galáxia, em um multiverso onde não existe Chico Buarque, não ficou sabendo.
Como só quem viveu os últimos 60 anos alheio ao mundo musical brasileiro – ou naquele tal multiverso onde não cabem Chico nem suas canções – não sabe quem é ele.
Uma espécie de Yesterday tropical, só que em vez dos Beatles no filme de Danny Boyle, o que nunca teria existido seria Chico Buarque. Mas, convenhamos: um universo, qualquer um que seja, deve ser muito chato sem Chico Buarque. E sabemos, ou achamos que sabemos, tudo sobre ele: que é filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda (que se orgulhava de ser o “pai do Chico”), que seu primeiro grande sucesso foi A Banda, que sua primeira grande vaia foi com Sabiá (composta com Tom Jobim, seu “maestro soberano, Antônio Brasileiro”), que viveu exilado na Itália durante a ditadura, que é torcedor do Fluminense, que fez três anos de arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP) mas trocou a régua T pelo violão, que é também escritor e dramaturgo… E por aí vai.
A lista de coisas que sabemos – ou acreditamos piamente que sabemos – sobre Chico Buarque é imensa. Como seu talento.
Nos últimos dias, aproveitando a data redonda de oito décadas, a mídia de uma forma geral homenageou-o justamente – às vezes até de forma repetitiva ou simplista. E tome “Chico Buarque em 80 canções”, “80 fatos sobre Chico Buarque”. Mas homenagem é homenagem, não é? Cabem todas. Até aquela que o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad, o órgão responsável por gerenciar os direitos autorais dos artistas, fez. Então, lá vamos, apesar da frieza dos números: graças ao Ecad, sabemos que Chico tem 537 obras musicais e 1.302 gravações cadastradas na gestão coletiva da música no Brasil. As obras musicais são as suas composições, com letra e/ou melodia e em parceria ou não. Já as gravações são registros de obras musicais disponibilizadas em forma digital (como no streaming) ou em suporte físico (como um DVD). Com isso, uma mesma obra musical pode ter diferentes gravações, como, por exemplo, a original, uma versão acústica ou um show gravado para um DVD.
Isso, distribuído em 50 discos – próprios ou com parceiros, em estúdio ou ao vivo. Quer mais números? Chico Buarque escreveu ainda quatro peças de teatro, uma novela, um livro de contos e seis romances – o próximo, Bambino a Roma, será publicado em agosto.
Mas é hora de parar com números, estatísticas e quejandos. Pelo menos um pouco. Onde se quer chegar com isso tudo é bem simples: Chico Buarque existe na vida de várias gerações de brasileiros desde quase sempre. Porque ele está entre nós praticamente em seis de suas oito décadas de vida. Ele vem embalando gerações, uma atrás da outra, sem cansar, sempre se renovando, passando da modinha quase ingênua de A Banda, em 1966, para, dois anos depois, a vaiada Sabiá – a metáfora sobre o exilado que muitos, naqueles anos de chumbo, não entenderam e preferiram a explícita e muito mais simples guarânia de Para não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré. E teve Roda viva, Construção, Com açúcar e com afeto, Mulheres de Atenas, Geny e o zepelim, Eu te amo… E uma sucessão de etcéteras. São 537 obras musicais, lembram? Está lá no Ecad.
Chico nasceu artisticamente ao mesmo tempo que o gênero do qual ele é uma das estrelas mais brilhantes e longevas. A obra musical de Chico Buarque nasceu em 1964, mesmo ano em que foi cunhada a expressão (e o gênero) Música Popular Brasileira, ou MPB – que acabou sendo muito mais do que um rótulo. É ao mesmo tempo receptáculo de artistas valiosos e desaguadouro da arte de nomes como Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Ivan Lins, Edu Lobo – seus contemporâneos – e gente de safras que foram se renovando ao longo de gerações, tendo muitas vezes Chico como principal inspiração.
Porque Chico Buarque está entre nós há décadas e, pode-se dizer, está em nós há décadas. Ele faz parte do nosso imaginário, do nosso cotidiano – mas todo dia ele faz tudo sempre igual? Não. E por isso ele seduz por tanto tempo, desde que, em meados dos anos 1960, foi alçado a contragosto – como lembra o crítico Mauro Ferreira, do G1 – ao posto de popstar. E logo depois, já era reconhecido como “gênio”. Coisas que a sua proverbial timidez sempre o impediram de aceitar. Mas isso é problema do Chico. O mundo inteiro pensa diferente.
O historiador Sérgio Buarque de Hollanda em sua casa rodeado por seus filhos (Chico é o segundo da esquerda para a direita), em 1974 – Foto: VP-155, Catálogo do Fundo Sérgio Buarque de Holanda – Arquivo Central do Sistema de Arquivos. Área de Arquivo Permanente – UNICAMP
Já foi dito aqui que ele se renova e que faz parte do imaginário nacional, da nossa própria noção de brasilidade.
Então, vamos por partes. A renovação musical que se deu principalmente entre 1968 e meados para finais dos anos 1980 fez de Chico Buarque o grande intérprete do Brasil e dos brasileiros. Ele cantou as dores de amor, ele assumiu como ninguém vozes femininas, colocou o dedo na ferida da sociedade emparedada pelo regime militar. Ele disse e cantou que ia passar. E passou. Ele mostrou o grotesco sociopolítico dos “anões de bulevar”. E atravessou o Mar Oceano e cantou as maravilhas de poder sentir o cheiro de alecrim. Quando Portugal comemorou agorinha, em 25 de abril, o meio século do fim da ditadura salazarista, as ruas de Lisboa foram invadidas por Tanto mar.
Porque aí está outro condão – entre tantos – de Chico Buarque: suas canções ficam, e embalam. E enternecem. E fazem pensar. Porque Chico, mais do que um compositor, é um poeta, é o “autor de canções que passaram a integrar o patrimônio da sensibilidade brasileira”, como bem lembrou recentemente a escritora e professora de Teoria Literária da Unicamp e da USP Adélia Bezerra de Meneses, certamente a maior especialista em Chico Buarque do lado de baixo do Equador – aquela região, como ele mesmo cantou, “onde não existe pecado”.
É também Adélia quem chancela a ideia de Chico como poeta. Grande poeta. Adélia, não: na verdade, o autor de um cartãozinho que ela recebeu em 1982, quando concluiu sua tese sobre o artista, e que guarda até hoje com carinho. Ali, o autor do bilhete em cartão escreveu que o que Chico faz é “poesia”. Quem disse isso? Carlos Drummond de Andrade. Está bem assim?
E, sim, é poesia. Mas do que música, mais do que composições que se eternizaram e que todos nós já entoamos, cantarolamos, assobiamos ou até, em determinados momentos, apresentamos à pessoa amada como uma declaração que, se não sabíamos fazer, Chico sempre soube. Afinal, sempre haverá um paletó enlaçando um vestido no armário de seres que se amam. Mesmo quando se separam.
A poesia de Chico é daquelas que, independentemente de arranjos musicais, sobrevivem/vivem sozinhas, existem porque são boas, são lindas. Quer um exemplo, só um entre vários? Aqui vai o gosto pessoal, mas a situação e a data permitem. Tente ler, sem cantar junto (se conseguir), uma parte que seja da letra de As vitrines. Não lembra qual é? Lembra sim. Só não está ligando o nome ao poema. Uma ajuda, então:
Eu te vejo sumir por aí
Te avisei que a cidade era um vão
Dá tua mão, olha pra mim
Não faz assim, não vai lá, não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão frouxa de rir
Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
as vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
Isso tudo para dizer que Chico Buarque é uma unanimidade? Não necessariamente. Nelson Rodrigues já havia dito que “toda unanimidade é burra”. E a estultice não deve nunca estar perto do nome de Chico Buarque de Hollanda. Nem quando isso significa receber um diploma, como o do Prêmio Camões, que Chico recebeu do governo português em 2020, mas o ocupante do Palácio do Planalto na época se recusou a assinar junto com o presidente de Portugal. Uma questão de ideologia distópica. Só quando Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito, Chico recebeu o diploma, com a assinatura correta. Melhor assim: para Chico, para o prêmio, para o Brasil e para Camões. Há coisas que não se misturam. Um jamegão, quase uma garatuja, daquele então inquilino palaciano dividindo o mesmo espaço no pergaminho do diploma com o nome de Chico Buarque de Hollanda é uma delas.
Mas Chico não se faz de rogado. Continuou sendo uma bússola de brasilidade e de defesa de direitos democráticos, mesmo quando as coisas pareciam estar degringolando – na ditadura e em anos mais recentes. Entre 2019 e 2022, quando Chico fez shows na Europa, os teatros lotaram por duas razões: por suas músicas, obviamente, mas também pelo desejo de reencontrar um Brasil que parecia estar se esvaindo em meio a fake news e intolerância. E agora mesmo, quando, às vésperas de comemorar seu aniversário em Paris, preferiu ir às ruas parisienses – ao lado do ex-jogador Raí – e participar de uma manifestação popular contra o crescimento da extrema direita mundo afora.
Mas voltando à tal unanimidade. Há discussões que beiram a questões bizantinas, mas que instigam os fãs: seus olhos são azuis, verdes? Azul-esverdeado? Verde-azulado? E tem gente que acha que Chico não é um bom cantor. E talvez não seja mesmo. Caetano, seu oposto complementar – solar, iluminado e luminoso, enquanto Chico parece preferir o chiaroscuro dos tímidos –, também é grande compositor e melhor cantor. Mas ninguém interpreta as músicas de Chico Buarque como Chico – mesmo se estivermos falando, por exemplo, de uma Maria Bethânia. Isso, ainda quando alguns dizem que a voz dele é quase de taquara rachada e que ele desafina. É? E daí? Não é verdade, mas como cantou o seu grande amigo e parceiro Tom Jobim, “no peito dos desafinados também bate um coração”.
E o de Chico é generoso. Quando o Coral da USP, em meio à pandemia, quis colocar no Youtube sua Paratodos e pediu sua autorização, Chico deu na hora. Mas com uma condição: que ele participasse do vídeo (assista aqui). Outro exemplo foi quando Adélia Bezerra de Meneses fez uma festa para comemorar a defesa de sua tese – aquela que fez Drummond elogiar e chamar as letras de Chico de “poesia”. A tese virou livro e chama-se Desenho Mágico. Bem, Adélia comemorou e estavam em sua casa o professor Antonio Candido, seu orientador, e Sérgio Buarque de Hollanda. O telefone tocou. Era para Adélia. Chico estava ligando para parabenizá-la. Mas preferiu uma outra forma de se identificar, com um humor que só os mais íntimos compartilham. Quando foi perguntado quem queria falar com a nova doutora, ele simplesmente respondeu: “A tese”.
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