“A gente é chapéu de couro, gibão do vaqueiro, baião e forró. Sem isso, a gente não é nordestino. Porque a gente pode mudar as flores, mas a raiz é forte e ela não vem abaixo.” Foi com essas palavras que o produtor cultural e músico Ciço do Pife, de São José do Egito, sertão de Pernambuco, descreveu seu sentimento diante da falta de espaço nos line-ups dos festejos do ciclo junino em Pernambuco. A reportagem é de Maya Santos/leiaja.com
No último dia 4 de junho, Ciço e outros forrozeiros ocuparam a frente da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe), localizado no bairro da Boa Vista, para reivindicar um olhar mais sensível e responsável da gestão pública para os artistas do gênero.
O ato foi impulsionado por uma reflexão publicada pelo sanfoneiro Mestre Gennaro, no dia 1º de junho, em seu Instagram. No relato, ele abordou o apagamento dos artista que carregam a cultura forrozeira nas costas e compartilhou seu incomodo com os internautas.
“É sempre uma luta, pois fico tentando fazer tudo certinho, do jeito que tem que ser. Meu show não é caro, mas é sempre uma luta, e quando a coisa tá complicada, às vezes prefiro ficar na minha rede tocando pra minha neta. Mas, só se dá valor pros artistas depois que eles já viraram estrelinha no céu”, disse Gennaro, que é autor de mais de 200 composições.
Ele também resgatou as adversidades enfrentadas pelo cantor e compositor Luiz Gonzaga, figura que popularizou o forró no mundo. “Lembre que até Luiz Gonzaga ficou uns anos aperreado sem shows, se o rei ficou, imagina eu? Mas garanto que todo ano você escuta o som da minha sanfona ecoar sobre as palhoças. Afinal minha sanfona está em umas 800 músicas”, enfantizou o mestre sanfoneiro.
Descaracterização do São João-A peleja da categoria de músicos não é de hoje. Na verdade, essa reflexão do Mestre Gennaro é um sentimento compartilhado por diversos pessoas que atuam na área. À reportagem, a cantora e compositora Marília Parente analisou o mercado musical que impulsiona o extermínio dos símbolos e signos do período junino do Nordeste.
“O problema que eu enxergo é como a indústria da cultura devora as expressões, [ou seja], não existe uma convivência. O mercado visa o lucro, então ele se apega a um tipo de demanda que ele mesmo cria nas pessoas”, opinou a cantora, que sempre teve uma relação íntima com o forró. Apesar de ser natural de Recife, capital de Pernambuco, ela bebeu da fonte do saber em Exu, sertão do estado, berço cultural do cantor e compositor Luiz Gonzaga.
“Nós vivemos em um sistema econômico capitalista que funciona através do capital e do lucro. Então, existe uma indústria que vai engolir todas as expressões que não vão ser tão lucrativas naquele período, que são as mais antigas”, analisou.
A cantora também provocou ao questionar o motivo da música preta, periférica e rural não está sendo bem representada como deveria. Apesar da preocupação, Marília afirmou que a questão do São João é o protagonismo da festa.
“A questão do São João não é que ele não pode abraçar outras expressões e não pode ser um megaevento que gera riqueza. Não estamos falando sobre não trazer artistas que dialogam com o gênero, como João Gomes, que tem outra estética, o piseiro. Mas, ele não pode ser o protagonista do São João. O protagonista ainda precisa ser Mestre Gennaro e Onildo Almeida”, declarou a cantora.
Com a chama do debate acesa, entrevistamos outras pessoas do grupo de manifestantes que transformou as escadas da Alepe, no bairro da Boa Vista, no dia 4 de junho, em palco para exigir não só a prioridade nas programações juninas, mas também ao longo do ano.
“Esse movimento é em defesa dos sanfoneiros e do trios pé de serra, que engloba também a cultura nordestina. Nós, infelizmente, estamos sendo preteridos e perdendo nossos espaço para outras culturas”, explicou Ciço do Pife, que atua na área desde 2014.
Ao falar sobre o tema, ele relatou como é o trato com os artistas da terra em comparação com nomes nacionais. “Esse movimento é necessário, porque todo ano os artistas do forró reclamam de que estão perdendo espaço, mas ninguém faz nada. Isso aqui é o primeiro movimento de muitos que virão em defesa dessa classe, dos forrozeiro raiz, que ficam com o cachê menor, às vezes demora para receber e não tem nem camarim e fica sentado no corredor. [Somos] tratados como se fosse coisa de segunda categoria, coisa que não somos”, desabafou o tocador de pífano, flauta popular no nordeste.
Acrescentando a fala do colega, Antônio do Fole, de 73 anos, de Tracunhaem, na Zona da Mata de Pernambuco, afirmou que ninguém é contra os estilos musicais em evidência nos palcos, no entanto ele pede respeito à tradição. “A gente é desvalorizado e caiu um pouco [na preferência] por causa dessas músicas diferentes, que eu não sou contra, mas cada um tem o seu lugar. Eu acredito que dar valor a gente, assim como dão a eles, é valorizar nosso São João”, disse o músico, que toca o Fole dos 8 baixos desde os 17 anos de idade.
O movimento conta com a coordenação geral dos jornalistas Ildefonso Fonseca, Márcio Maia e Ruy Sarinho, três entusiastas do gênero musical que acompanham a cena a décadas. Em entrevista ao LeiaJá, Ildefonso explicou os objetivos do ato, assim como os próximos passos.
“Escolhemos a Assembleia porque deputados e deputadas são legisladores e, portanto, têm mecanismos legais para influenciar fundações e secretarias do poder público”, iniciou.
O jornalista deu detalhes sobre os próximos passos: “Vamos acompanhar o Portal da Transparência e o Tribunal de Contas da União para que possamos avaliar quais eventos públicos contrataram os sanfoneiros e os trios pé de serra, e seus cachês. Então, a partir disso, nós vamos poder organizar essa categoria que é tão dispersa. Isso, deixa ainda mais vivo o legado de Luiz Gonzaga, eterno Rei do Baião.”
Ainda durante o ato, alguns parlamentares compareceram em favor dos manifestantes. Entre eles, estavam as deputadas estaduais Dani Portela (PSOL-PE) e Rosa Amorim (PT-PE), além dos deputados estaduais João Paulo (PT-PE) e Antônio Moraes (PP-PE).
Rosa Amorim, que é nascida em Caruaru, fez uma fala em apoio ao movimento. “Estou diante dos verdadeiros guardiões da tradição do São João, do forró pernambucano. Vocês que mantém nossa cultura viva e, por isso, deveriam ser os mais valorizados não só no ciclo junino, mas o forró deveria comer no centro o ano inteiro”, declarou.
De forma geral, o discurso dos outros parlamentares se alinharam aos interesses dos manifestantes. A deputada Dani Portela também se posicionou: “A cultura é a nossa identidade, é aquilo que nós somos. Então, investir em cultura não é só investir em ciclos sazonais, porque todo mundo aqui tem que pagar conta o ano inteiro e tem que sobreviver o ano inteiro”.
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