“Tão botando veneno aqui com aquele bicho que ninguém nem vê (drone). Meu menino foi lá perto e ficou todo molhado de veneno, um veneno de cheiro muito podre.”
“O local onde estão colocando veneno fica no caminho para a escola das crianças. A preocupação é que as crianças que passam por perto tenham contato com esse veneno”.
“Pararam de botar veneno com os aviões e agora estão botando de drone. Estão prejudicando nossas águas e rios”
“O meu roçado é prejudicado pelos venenos que são despejados no solo. Tudo o que a gente planta está sendo afetado pelo veneno. Nenhum pé de caju, de manga, nenhuma planta vai pra frente”
“Minha mulher está com câncer e isso pode ter alguma coisa a ver com o veneno”
Esses são relatos de pessoas que vivem em diferentes comunidades rurais da porção maranhense do Matopiba e que por segurança preferem não se identificar. As denúncias se referem ao uso de agrotóxicos em grandes lavouras que cercam as comunidades, e os riscos e danos que a exposição ao veneno podem causar à saúde humana e ao meio ambiente. Com a proibição da pulverização aérea, em algumas dessas localidades, os aviões que faziam esse trabalho estão sendo substituídos por drones, uma forma mais discreta de distribuir veneno pelos ares e burlar a legislação.
“Nos últimos meses ficamos estarrecidos com a quantidade de denúncias que têm chegado de comunidades atingidas, crianças que estão sendo contaminadas, animais que estão morrendo por causa da contaminação e pessoas sendo ameaçadas de morte em conflitos gerados em torno disso”, destaca Ariana Gomes, da secretaria executiva da Rede de Agroecologia do Maranhão (Rama).
Em um cenário onde a legislação não é favorável, e com a ausência de fiscalização por parte dos governos estaduais e federais sobre os empreendimentos que cometem tais infrações ambientais, iniciativas populares se fortalecem para tentar reduzir os impactos dos agrotóxicos, especialmente sobre comunidades rurais.
O diálogo com a sociedade civil, a disseminação de cartilhas e informações, a promoção de cursos e formações, o acompanhamento dos trâmites legislativos, além das articulações políticas são iniciativas da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, que também acompanha denúncias e famílias atingidas por danos dos agrotóxicos.
De acordo com Alan Tygel, da coordenação da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, o cenário brasileiro com relação aos agrotóxicos é ruim. Como exemplo, cita a aprovação do Pacote do Veneno, Projeto de Lei Nº 1.459/2022 no qual a bancada ruralista investiu por décadas e que finalmente foi aprovado pelo Senado, sancionado pelo presidente com alguns vetos, em dezembro. Mas parte relevante desses vetos foi derrubada nos últimos dias.
“Infelizmente a perspectiva é de piora, porque a Lei 7.802, a antiga Lei de Agrotóxicos, até ano passado ainda conseguia assegurar princípios importantes para a proteção da saúde e do Meio Ambiente. Um desses princípios fundamentais era a regulamentação feita em igual poder pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Com a nova lei, tudo fica somente a critério do Ministério da Agricultura”.
A campanha reivindica, atualmente, a instituição do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), do Governo Federal, aprovado por todos os ministérios envolvidos em 2014. “Nesse momento, estamos retomando o Pronara, dentro do contexto da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e estamos lutando para que esse programa seja lançado e revisado ainda neste ano para que termos ações concretas para reduzir e eliminar os agrotóxicos mais perigosos assim como essa forma de aplicação mais nociva como a pulverização aérea.”
O movimento aponta como caminho a proibição da pulverização aérea: “No Maranhão, estamos recebendo muitas denúncias de diversas comunidades do Estado inteiro que estão sendo pulverizadas, recebendo essas chuvas de veneno. Já está mais que comprovado que a prática não tem como ser feita de forma segura e sempre oferecerá riscos de atingir áreas a muitos quilômetros de distância dos lugares onde são aplicados os agrotóxicos. A tecnologia dos drones tem uma regulamentação ainda mais frouxa e oferece um igual risco de contaminação”.
No Brasil, apenas o Ceará tem uma lei que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos: a Lei carrega o nome do agricultor familiar José Maria do Tomé, que foi assinado em 2010 por denunciar a pulverização de venenos em comunidades no interior do Estado. Em instâncias municipais, ou seja, que não contam com a interferência dos governos estaduais e federais, 25 municípios do Brasil já avançaram com essa proibição.
Caxias é o mais novo município maranhense a proibir a pulverização aérea. Outros oito municípios maranhenses estão tramitando projetos de lei de proibições. Do outro lado do Atlântico, em países desenvolvidos da União Europeia, a prática está banida desde 2009 por causa dos graves e comprovados riscos à saúde humana e ao meio ambiente.
Além de todos os danos causados à saúde e ao meio ambiente, Alan pontua o uso da pulverização aérea de agrotóxicos como arma química para forçar a expulsão de famílias e comunidades rurais de seus territórios originais, fato recorrente no Maranhão e nos outros estados brasileiros onde há a pujança do agronegócio.
Outro caminho de solução em longo prazo é a transição para um modelo agroecológico, onde haja a produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos, com respeito aos ciclos da natureza e adoção de consórcios. Esse modelo é uma necessidade urgente para lidarmos com as mudanças climáticas. “Temos o exemplo do Rio Grande do Sul, que é um dos estados que implementou com muita força esse movimento do agronegócio, com grandes áreas de monocultura, uso de agrotóxicos, ignorando as matas ciliares, e tudo isso traz como consequência esses desastres que estamos vivenciando.”
Tygel considera que é mais do que urgente implementar políticas públicas com orçamento e efetividade para realizar de fato uma transição para esse novo modelo de produção agrícola.
Envenenamento silencioso-No ano de 2023, foi lançado pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e a Fundação Oswaldo Cruz um dossiê que atesta, por meio de análises laboratoriais, a contaminação das águas de povos e comunidades tradicionais pelo veneno lançado por sojeiros, no Cerrado brasileiro.
O estudo considera que no Cerrado há um cenário de guerra química contra as comunidades tradicionais. De acordo com o documento, estima-se que 600 milhões de litros de veneno são derramados no Cerrado, por ano. Mais de 60% dos agrotóxicos utilizados em território nacional se destinam ao cultivo de soja. A pesquisa identificou ainda que mais de 43% dos ingredientes ativos (IAs) liberados no Brasil possuem uso autorizado na soja e que todos os dez agentes mais comercializados no País podem ser utilizados nesse cultivo. Nas sete comunidades participantes do estudo em que houve coleta de água, foram identificados, ao todo, 13 agrotóxicos diferentes.
O dossiê identificou riscos associados a doenças como câncer de diversos tipos e à desregulação endócrina. O documento considera que os agrotóxicos “causam a contaminação das pessoas e seus corpos; de escolas e estudantes; da água de beber e cozinhar; das roças; do rio e do açude que eram, antes, locais de alegria; do solo, onde, outrora, brotavam os alimentos das comunidades. No meio ambiente, os impactos negativos também se alastram, como a perda da biodiversidade e seu potencial econômico e ecológico, o aumento da resistência das pragas e os possíveis custos para a descontaminação da água, do solo e do ar.”
Estudos também apontam que doenças respiratórias, auditivas, alérgicas, neurológicas e psiquiátricas também podem ser associadas à contaminação com agrotóxicos.
MO TO PI Projeto ma.to.pi.ba.
Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange, Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba, inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.
O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.
Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.
O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts, e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.
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