Os relatos, registrados pelas narrativas dos primeiros moradores, contam que por volta do ano 1817 ocorreu o processo de povoamento com as primeiras famílias chegando à região onde hoje é a Comunidade Tradicional Fundo de Pasto Caldeirãozinho, em Uauá-BA.
As terras foram adquiridas diretamente da Casa da Torre e, desde então, a comunidade reconhece a partir daí a sua ancestralidade, ligada às famílias iniciais: Ferreiras e Gonçalves.
A sucessão de gerações, com todos os aspectos da dinâmica comunitária foram desenhando um modo de viver que preza pela coletividade, o uso comum da terra, a partilha do acesso aos bens hídricos e diversos elementos culturais que configuram o que conhecemos por Comunidade Tradicional Fundo de Pasto. Inclusive, é de lá que surge essa nomenclatura, que também define uma forma de organização comunitária que dialoga com a Convivência com o Semiárido.
Toda essa história e diversos temas de Caldeirãozinho estão devidamente registrados em um Mapeamento Agroecológico daquele território. O trabalho de construção desse mapeamento foi iniciado no dia 18 de junho de 2022 e culminou com o lançamento, que ocorreu na noite do último sábado (20), em um momento celebrativo com a comunidade.
Além das pessoas envolvidas na organização do material, o evento contou com a participação da maioria dos/as moradores/as de Caldeirãozinho, crianças da escola local, representantes das comunidades vizinhas, do legislativo do município de Uauá, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).
Se tem algo que possa resumir o quanto o mapeamento é importante para o povo de Caldeirãozinho, são as palavras: ancestralidade e organização comunitária. Isso podia ser constatado na ambientação da sede da associação, que tinha, por exemplo, fotos das pessoas que ajudaram a construir a história do lugar e ainda através das diversas falas marcantes ao longo do evento.
Um dos destaques foi logo no início, na apresentação das pessoas que estavam presentes. O pequeno Milton, de apenas 9 anos, arrancou fortes aplausos ao dizer: "Moro em Uauá e tenho raiz em Caldeirãozinho". Isso por si só já define o quanto há de apropriação das pessoas da comunidade, com o sentimento de pertencimento, com o orgulho de ser do lugar, de identidade cultural.
O lançamento aconteceu na sede da Associação Comunitária Agropastoril da Fazenda Caldeirãozinho. Durante a abertura, o vice-presidente dessa associação, Maikon Gonçalves, pontuou as diversas lutas para garantir os direitos, um trabalho árduo feito por muita gente, principalmente quem ocupou a presidência da entidade. Utilizando comparativos com elementos da cultura vaqueira, Maikon enalteceu o trabalho da associação, a importância da união do povo. “É aqui que a gente deve se organizar, aqui é espaço de organização, de povo unido, de ‘vaqueira e vaqueiro ancorado, montado num cavalo bom’. É aqui que a gente vence e isso é uma associação”.
Entre os muitos avanços da comunidade está o acesso a tecnologias sociais, por exemplo, na comunidade tem 20 famílias com tecnologia de tratamento de esgoto doméstico, com reúso de águas. Também há o cuidado com o bioma Caatinga, mais de 90% do território é de Caatinga fechada e espaçada. A pequena faixa de solo exposto compreende a área das residências.
De acordo com o Engenheiro Agrônomo, mestrando no programa de Antropologia da Univasf, Diego Lima Verde, que esteve à frente do mapeamento (com georreferenciamento, cartografia, fotos, entre outras funções), as atividades que permitiram essa construção participativa só foi possível graças a essa organização da Associação, que teve um “comprometimento firme em envolver toda a comunidade na condução de todas as etapas do mapeamento. Esse empenho reflete a dedicação e o compromisso da Associação Comunitária com o território e seus moradores. Além disso, é bom destacar a riqueza cultural da comunidade, demonstrado pela transmissão de conhecimentos sobre o modo de vida às gerações mais jovens, um valor inestimável para as famílias que formam o território. Também é importante evidenciar o esforço contínuo da comunidade em conservar a caatinga, lutando pelo direito de manter ela em pé”.
A transmissão de saberes, mencionada pelo Diego, é reforçada pelo agricultor da comunidade vizinha Ouricuri, Alcides Peixinho, que participou do lançamento. Ele enfatiza a importância de quem construiu essa história ao longo dos anos. “A gente deve muito a quem deu esse pontapé (...) quando se coloca as palavras Comunidade Tradicional de Fundo de Pasto. Essa palavra vem forte, inclusive a comunidade Caldeirãozinho é de onde nasce a palavra ‘Fundo de Pasto’, pessoas que têm ideias, têm sonhos, vocação, sentimento pela sua comunidade, família e seu povo, pelo modo de ser, o sistema [áreas coletivas, etc] de como viver no Semiárido. Então, são histórias que precisam ser registradas”.
Para que isso seja possível, Alcides, que também é vice-presidente do Irpaa, faz questão de destacar o elemento ‘Ancestralidade’. “Nossos antepassados foram os responsáveis de nos ensinar, nos dar esse conhecimento de mão cheia, que muitas vezes, não foi por escrito, mas nas conversas, nas rodas de conversa, nas calçadas. E não é só conhecer, mas também tem que ter o respeito, ser tolerante, suportar algumas divergências que, às vezes, a gente vai pro diálogo. Por isso que eu sempre falo que o diálogo e o acordo traz a paz”.
O registro das narrativas orais, com esses saberes e tradições ancestrais, em um material palpável também foi celebrado pela presidenta da Associação de Caldeirãozinho, Cleia Gonçalves. “O mapeamento é um marco para gente da comunidade. Porque, até então, a história estava só na mente, nas falas das pessoas. Hoje ela está escrita, catalogada; a gente tem um material que é visível, que a gente pode manusear, trabalhar até com as crianças”.
Outra pessoa que participou do lançamento foi a agricultora de Caldeirãozinho, Isabel Moura, que avalia o mapeamento como uma riqueza de “conhecimento para todos os moradores e comunidades vizinhas. Agora todos sabem da história e também vai fortalecer na luta contra os invasores”.
O agricultor José Pereira, conhecido como Zé Lídio, aprovou o trabalho realizado e também ressalta que esse material vai auxiliar na defesa do território. “Eu já tô com 72 anos, sou do quase os mais velhos, né, tirando o Claudionor [outra referência na comunidade]. Então, eu conheço muito bem as coisas por aqui e tá tudo certinho com o mapeamento. Através disso, eu acho que agora a gente vai ficar mais sossegado”. Esse destaque do Zé Lídio, sobre “ficar sossegado” é porque no histórico do lugar consta ameaças constantes de “gente querendo se apossar”; e o mapeamento deve contribuir nessa luta, no trabalho educativo e de incidência por políticas públicas.
“Ele não apenas serve como instrumento jurídico de defesa, mas também como meio de apresentação e argumentação na busca por políticas públicas contextualizadas com as realidades locais. Além disso, é uma importante ferramenta pedagógica que pode ser utilizada nas escolas rurais, reuniões de planejamento territorial comunitário e programas de assistência técnica e extensão rural. Essa abordagem fortalece as estratégias e acordos para o manejo coletivo e familiar da biodiversidade, promovendo maior autonomia, resiliência dos agroecossistemas e proteção dos territórios dos povos e comunidades tradicionais”, enfatiza Diego Lima Verde.
Os diversos benefícios do Mapeamento incluem ainda a potencialização de narrativas favoráveis à comunidade, para combater discursos negativos estereotipados que incentivam ou tentam justificar a apropriação do território. “Ele registra, de fato, que nós temos condições de viver nessa terra, nessa comunidade. Porque, até então, a gente tem a luta com as mineradoras, com grileiros que sempre sustentam a fala de que a gente não tem como sobreviver aqui. E o mapeamento fez um retrato e um apanhado de tudo que nós temos, de todas as riquezas, como também da história do povo, dos nossos antepassados e que é muito riquíssimo que a gente trabalhe com as outras gerações”, ressalta Cleia Gonçalves.
A publicação, que em breve estará disponível na aba de cartilhas do nosso site, apresenta para a sociedade as diversas características do lugar, aspectos culturais e históricos e mapas sobre o uso e ocupação do solo; além de apontar as áreas mapeadas pela mineração.
Durante o lançamento, a comunidade destacou o que surge de novo, a partir desse trabalho. Por exemplo, pensando em potencializar o turismo rural, foi elaborado um roteiro desafiante de Trilha Ecológica com 13 km, em Caatinga fechada e subindo serra, que contempla lugares como Umbuzeiro do cuscuz e pedra da trilha.
Este é o sétimo Mapeamento Agroecológico de Comunidade Tradicional feito em 5 municípios do Território de Identidade Sertão do São Francisco. As atividades são frutos de iniciativas realizadas/apoiadas pelo Irpaa, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). De acordo com Diego Lima Verde, as ações já envolveram 21 comunidades e quase 4 mil famílias.
O mapeamento da Comunidade Tradicional Fundo de Pasto Caldeirãozinho foi realizado pela Associação Comunitária, Irpaa e a Articulação Fundo e Fecho de Pasto; e contou com o apoio da MISEREOR.
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