Um dos grandes empreendimentos do Império Romano levado a cabo em inacreditáveis oito anos, entre 72 a.C e 80 d.C, e nomeado Anfiteatro Flavio, porque construído pela dinastia da família flaviana, foi iniciado no reinado de Vespasiano e terminado no do seu filho, Tito. Ficou para a posteridade como Colosseu ou Coliseu, em português.
A ação acontecia na arena, assim chamada pela sua raiz latina que significa “areia”. Era necessário no mínimo uma camada de dez centímetros para absorver todo o sangue derramado em uma programação diária que iniciava às 9h, com escravos sendo jogados para os animais naquela época exóticos, como leões, tigres e rinocerontes. Logo após, às 11h, tinha lugar a execução de criminosos, julgados e condenados à morte de maneiras mais ou menos cruéis, dependendo da gravidade dos crimes (incluindo a crucificação). Por último, a batalha dos gladiadores que, ao contrário do que foi propagado no cinema, não eram sempre mortos, pois interessava sua vida para a manutenção da qualidade dos “jogos”. E, também ao contrário dos filmes, era raro um ser humano sobreviver às feras, que eram mais valiosas. No festival de cem dias da sua inauguração, mais de cem pessoas morriam diariamente.
Antes de nos apavorarmos com os espetáculos diários de violência explícita promovidos pelo Império Romano durante séculos, algo como o YouTube da época, produzido para o entretenimento do povo, gratuito e aberto a todos, cidadãos ou não, mulheres e homens livres ou não, cabe nestes dias uma reflexão mais apurada sobre como a sociedade ocidental absorveu a produção e o consumo de imagens violentas. Sabemos que o Coliseu teve sua decadência com o fim do Império Romano, com a aceitação do Imperador Constantino da religião cristã, com a propagação da palavra de Jesus com a máxima “amai-vos uns aos outros”, e que Roma se tornou então o centro do poder católico.
No entanto, vieram outros ciclos de produção de imagens violentas, como o espetáculo de mulheres (mais de 100 mil durante a Inquisição) sendo queimadas vivas nas fogueiras em praças públicas. Daqueles tempos até os dias de hoje, muita água rolou sob as pontes do Rio Tibre, e espetáculos de violência explícita em praça pública não são mais legalizados, tidos como aceitáveis moralmente. Linchamento é crime punível por lei.
No entanto, a humanidade nunca parou de produzir e consumir imagens de violência explícita. Pelo contrário; algumas delas continuam sendo consumidas em larga escala, como ficção ou informação. As tecnologias de reprodução das imagens técnicas como a máquina fotográfica, o cinema e a televisão, inclusive, foram impulsionadas durante guerras e conflitos, como discutem Paul Virilio e Friedrich Kittler. A filósofa Sissela Bok analisou, antes ainda da era das plataformas de mídia social, a violência como entretenimento público nos meios de comunicação de massa. Assassinos por natureza (Natural Born Killers) e O silêncio dos inocentes (The Silence of the Lambs) do início da década de 1990, quando a internet ascendia nos Estados Unidos, são exemplos de filmes que alcançaram grande sucesso e popularidade. Segundo a autora, causaram uma espécie de “hipnose” no público.
Depois da internet, do desenvolvimento da comunicação em rede e da distribuição de imagens e vídeos por arquiteturas computacionais baseadas em algoritmos de distribuição, passamos a uma nova escala de produção e consumo de imagens. A dinâmica da recursividade do algoritmo, ou seja, sua característica de voltar a ele mesmo para resolver um problema, tende a um movimento de feedback looping, um ciclo recursivo que tende a reforçar conteúdos similares. Isso pode ser um problema quando pensamos em imagens de violência, pois atingimos um novo patamar de “arena pública”. Neste contexto, como educar para a diferença entre imagens de denúncia de graves violações de direitos humanos, como a cobertura de guerras, desastres ambientais e conflitos produzidas por fotógrafas como Lynsey Addario, e imagens produzidas para disseminação do terror ou para entretenimento mórbido?
Uma área recente de estudo pode nos ajudar a investigar melhor essas imbricações complexas, e sua necessária relação com o campo da Comunicação. Se as imagens produzidas no Coliseu hoje são crimes, o que vem sendo gestado de lá para cá é estudado por uma área chamada de Criminologia Cultural, que analisa as imagens de representação do crime e da violência, e como elas fazem parte da cultura midiática contemporânea, influenciando muitas vezes até o que é considerado crime. “O crime como mídia e a mídia como crime”, como definem Ferrell, Hayward e Young em Criminologia Cultural: um convite, nos faz pensar como o Coliseu continua bastante atual, ao alcance de todos, como na Roma Antiga, e como a produção e consumo deste tipo de imagem pode levar a denúncias importantes, mas também à sua banalização.
Por Daniela Osvald Ramos, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
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