O dia apenas amanhecera.
Mestre Jorge ainda se aprontava para ir à labuta quando o cangaceiro, de modo inesperado, adentra as terras do Velame. Ele e os seus comparsas, como costumava acontecer em situações semelhantes.
Queriam rancho. Pelo menos por um dia, antes de partir para as Alagoas.
Mestre Jorge, que era homem de comprovada coragem, acostumado a derrubar touro brabo, dessa vez sentiu medo.
E não era para menos.
Afinal, achava-se ele diante de ninguém menos que Lampião, o maior bandoleiro de todos os tempos, sujeito frio e calculista, dono de façanhas as mais perversas e assustadoras. O homem mais temido e afamado daquelas bandas, cuja epopeia corria de boca em boca, sendo contada em folhetos de cordel, glosada nas rodas de viola, narrada ao redor das fogueiras.
Mestre Jorge, porém, se conteve.
Pelo menos procurou se conter, evitando demonstrar contrariedade. “Fosse o que Deus quisesse” – pensou, enquanto convidava o famoso hóspede a tomar assento, já o convocando, assim como os demais do bando, para o dejejum matinal, que começava a ser servido.
Agora, de estômago forrado, os “fora da lei” procuravam um canto onde pudessem tirar uma madorna. Inclusive Lampião, que sesteava com dois cabras lhe fazendo sentinela.
Estavam exaustos e com sono.
Haviam passado a noite em intensa e acalorada bebedeira.
Findo esse primeiro momento, e já se sentindo relativamente à vontade, embora cercado de cangaceiros por todos os flancos, Mestre Jorge dirige-se ao chefe da horda, tentando puxar alguma conversa, no que é logo correspondido.
Começa por oferecer-lhe uma caninha, caninha da terra — explicou.
— Vosmecê bebe premero! — disse o cangaceiro, segurando o copo.
Ambos beberam, procurando sentir o gosto da cachaça.
Mestre Jorge prossegue, enquanto pita um cigarro de palha, sendo nisto seguido pelo outro:
— Capitão, que mal lhe pergunte, como vosmecê foi parar no cangaço?
Lampião solta uma baforada, elevando o olho são em direção ao horizonte. Em seguida, voltando-se para o anfitrião, passa então a discorrer:
— Quem me butou nesta vida disgraçada foro os home... Eu num era bandido não...
E conta como tudo começou.
O pai tinha uma terrinha no Pernambuco, coisa pouca, mas o suficiente para irem vivendo. Ali plantavam, colhiam e criavam um gadinho. De maneira que dava pra irem remando, mais ou menos sossegados. Até que certo fazendeiro, na ganância desenfreada de aumentar mais e mais seus haveres, invade a roça do velho e em seguida tira-lhe a vida. Sem que a polícia e a justiça tomassem qualquer providência.
— Eu era minino. Quando inteirei 14 ano resorvivingá a morte do meu pai e entrá no cangaço. — Conclui com a mão apoiada no cano do rifle.
— E o Capitão nunca pensou em largar essa vida? – inquiriu o donoda casa.
— Não, sinhô.
— Consta que vosmecê poderia viver muito bem, vivendo em outras bandas, sem ser incomodado...
O cangaceiro interrompe:
— Pudia. Mais acontece qui hoje in dia, abaixo de Deus (tirou o chapéu), eu só confio no meu punhá. E in mais ninguém.
— O Capitão é homem de coragem, de labuta, podia muito bem arrumar um serviço por esse sertão, quem sabe até por outras bandas, comprar umas terrinhas...
Lampião interrompe novamente, agora demonstrando impaciência:
— Mais como havera de sê se o guverno, o marditoguverno, num me deixa trabaiá?
E, mais calmo:
— Derde o dia qui eu entrei nessa disgraceiraquiminha vida é corrê dos macaco, dos mardito macaco, mode num sê sangrado e dispois jogado pros arubu, qui nem um bicho bruto.
***
Esse diálogo prossegue até mais ou menos o meio-dia.
Na sequência, deixando a tora de pau em que estiveram sentados até então, os dois se aproximam da mesa, onde o almoço começava a ser servido.
Almoço não, banquete. Banquete como nunca se vira no Velame, a não ser nas vezes em que Sofia e Carmélia contraíram matrimônio.
Para tal, Zefa se dedicara a manhã inteira, pensando cada detalhe a fim de nada faltar. Até uma pipa de cachaça mandara vir da cidade.
E almoçaram. Zefa, Mestre Jorge e o Capitão (este acompanhado de alguns poucos camaradas), sentados à mesa. O restante do bando, distribuído ao longo do terreiro.
Lampião se esbaldava na comida quase que em silêncio, como se dissesse não haver tempo a perder. Uma das poucas vezes em que o cangaceiro fez uso da palavra foi para elogiar a dona da casa.
— DonaZefafaizu’acumida danada de boa!
E ela, esboçando um sorriso:
— Bondade sua, Capitão!
Depois do rega-bofe – ocasião em que os forasteiros aproveitaram para tirar a barriga da miséria –, seguiram-se momentos da mais viva descontração, Mestre Jorge tocando sanfona, Lampião cantando e dançando.
No alto dos seus sessenta e tantos janeiros, Mestre Jorge já havia feito de um tudo. Entre outras coisas, fora vaqueiro, caixeiro-viajante e afinador de sanfona – daí tratarem-no demestre. Agora se dedicava ao comércio de peles, ali mesmo, num cubículo contíguo à sua residência. Sanfoneiro exímio, embora não fizesse disso profissão, vez ou outra era convidado a tocar em algum rala-bucho – especialmente durante os festejos juninos.
Pois desta feita era para o Rei do Cangaço que ele tocava.
***
Lá pras tantas – o forró nem sonhava em terminar –, ouve-se um grito vindo do meio do terreiro. Era Tonho do Brejo avisando da chegada dos macacos.
Ao ouvir a palavra macaco(ela que por si já provocava não pouco terror), os cangaceiros, à frente Lampião, sequer se despedem dos anfitriões. E, juntando às pressas o que podiam – as cartucheiras, os embornais, os fuzis, o que fosse possível –, imediatamente se atiram na caatinga, transpondo o Rio do Tubi, distante pouco mais de um quilômetro.
Enquanto isso, em meio a uma nuvem de poeira, os homens da volante, uns a pé outros montados, procuravam alcançar a cabroeira.
Simultaneamente, entre uma saraivada de raios e trovões, eis que desaba um temporal como há muito tempo não se via.
Com isso o Rio do Tubi, que há anos não via uma gota d'água, começa logo a transbordar, tão grande era a sua cheia. Tão grande a ponto de impedir que a fúria dos macacos – osmardito macaco – viesse a alcançar os cangaceiros. Eles que a essa altura já se encontravam do outro lado do rio. E bem longe dali.
***
Entre bravatas e correrias, continuou Lampião sua saga pelos campos espinescentes do sertão nordestino. Até o dia em que, numa gruta escura e traiçoeira, extinguiu-se para sempre a sua chama guerreira.
E enquantovida teve, jamais esqueceu a vez em que, no Velame de Mestre Jorge, ele e o seus cúmplices foram salvos pelas águas.
José Gonçalves do Nascimento
Escritor
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