Natal é tempo de reflexões, de despertar a solidariedade, provocar planejamentos e regar esperanças. Então é Natal… O que você fez? "Dezembro virou o mês da hipocrisia, todo mundo vira algo que não foi o ano inteiro". Nessa perspectiva, parece oportuno sublinhar quão os caminhos sinalizados pela magia contagiante do Natal se fazem notadamente leves e favorecem não apenas a capacidade que o ser humano tem de sonhar, mas de encontrar, na perseverança, no esforço, na fé e na credibilidade ao potencial intrínseco à natureza humana, as condições necessárias a busca e realização dos sonhos.
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Não, nunca gostei de dezembro e este texto pode “soar” meio amargo, mas tratará da realidade paralela criada em torno do Natal. Tive uma experiência ruim aos 13 anos quando morava em Brasília, numa casa de madeira, tipo um “barraco” bem organizado no estilo “candango”.
Na noite de Natal, ganhei uma bola de borracha e era tudo que eu queria. Depois da ceia com frango, farofa, arroz com passas e tal fui dormir, já ansioso pela chegada da manhã pra jogar com minha bola de borracha. Acordei, peguei a bola, olhei pra ela e feliz joguei na parede para testar o peso e tal. Bom, a bola bateu na parede e voltou com um buraco. Tinha um prego na parede do barraco. Minha alegria esvaziou junto com a bola. Consertei o furo. E joguei com ela por um bom tempo. Mas daquele dia, ficou um ranço natalino.
Contei essa passagem pra ilustrar uma frustração, mas o ranço a que referi veio da percepção da realidade à minha volta. Tinham crianças pobres, como eu, mas tinham famílias mais abastadas, tudo isso na mesma rua. Demorei um pouco tapando o furo na bola, quando consegui vedar com sucesso, fui chamar outros garotos pra uma pelada. E lá na rua, me veio o que considero a origem da minha aversão ao Natal. A desigualdade. Todas as crianças saiam pra rua com seus presentes natalinos. Enquanto uns, mostravam brinquedos modestos, como bolas, outros exibiam bicicletas, relógios e eletrônicos de última geração. Enquanto a ceia de uns era um jantar comum mais elaborado, outras casas esbanjavam comida e fartura. Digamos que a minha ideia de consciência de classe tenha se formado ali, naquela manhã, aos 13 anos.
Desde então, nunca mais vi o Natal com os mesmos olhos. Entendi que toda aquela bondade localizada, na verdade, escondia culpa. E aqui não culpo ninguém por ser rico ou pobre. A culpa a que me refiro é subjetiva e tem muito a ver com a religião. A culpa sobre agir com bondade e fraternidade apenas neste período, sempre tendo como pano de fundo o nascimento de Jesus. O verdadeiro sentido do Natal. Não o Natal importado dos americanos com suas luzes, renas e papai Noel. Aliás, explica parte da minha aversão, o consumismo como padrão, como objetivo. E nesse embate da dualidade humana, abre-se o fosso das desigualdades. A televisão diz pra comprar, a religião pra doar e a sociedade finge se importar, tudo isso ao mesmo tempo no mês de dezembro.
Filantropos “brotam do chão”, empresas movem campanhas para arrecadar donativos e garantir um Natal “feliz” para os pobres. Entidades religiosas e sociais vão às ruas levar alimentos e a palavra. Mas qual palavra? A de que Jesus era pobre? Que nasceu em um estábulo? Que foi perseguido pelos ricos e poderosos? Evangelizar quem tá em situação de rua ou moradores da periferia parece uma espécie de “mea culpa” sem a profundidade do porquê da culpa. Parece aquela penitência clássica, “reze três pai nosso e três ave Maria” e tá tudo certo. Pra mim, nem precisava, porque o deus que eu acredito é um Deus de perdão e amor, nunca de punição. Mas para além desses pontos, outra coisa me incomodava, a gente celebra a vinda de Jesus e quatro meses depois, o matamos novamente. E, durante oito meses, vivemos como se nada nos afetasse. Como se não houvesse nada a fazer em relação aos pobres, a fome, enfim, com a miséria, humana e material.
Temos 33 milhões de pessoas que não têm o que comer. Não tem quentinha que mate essa fome. Temos, hoje, quase 2 milhões de crianças e jovens em trabalho informal. Não tem palavra que inclua essas pessoas. Temos mães solo, negros e pobres perambulando pelos semáforos, em porta de padarias e supermercados.
Como posso acreditar na bondade da pessoa ruim? E as pessoas boas? O que fizeram nessa lacuna temporal. Temos 33 milhões de pessoas que não têm o que comer. Não tem quentinha que mate essa fome. Temos, hoje, quase 2 milhões de crianças e jovens em trabalho informal. Não tem palavra que inclua essas pessoas. Temos mães solo, negros e pobres perambulando pelos semáforos, em porta de padarias e supermercados. Tudo isso ampliado a “quinta potência” no mês de dezembro. O Cristo deixou seu maior mandamento, “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, mas Ele não disse, faça isso em dezembro, disse faça isso na vida, todos dias e todos os meses.
Então, a partir dessa percepção, dezembro virou o mês da hipocrisia, todo mundo vira algo que não foi o ano inteiro. A desigualdade fica visível pra onde quer que você olhe. Confraternizações e a ceia familiar funcionam como uma espécie de “bomba relógio” acionada por álcool e muito, mas muito, ressentimento reprimido. São histórias reais. Eu vivi tudo isso em algum momento. Não se trata de generalizar, mas de pontuar essa “preocupação” com o outro e até que ponto ela é real. O título remete à música que Simone canta muito bem e representa essa dúvida sobre o que fizemos e porquê fizemos. Amor ou culpa? Eu confesso, não fiz muita coisa. Mas não abracei a hipocrisia, isso eu não fiz. Meu texto é sobre isso. O amargo não é meu, é da postura da mídia, agentes políticos e a tradicional família bíblica. Os tais “gentes de bem cristã”. Exaltamos Jesus e seus ensinamentos pra depois, novamente, assassinarmos Jesus. Depois passamos oito meses ignorando tudo que nos “sensibilizou” em dezembro até o próximo dezembro.
Texto- Ulisses Aparecido Barbosa é radialista e jornalista; também já atuou como repórter e apresentador nas afiliadas da Globo, Record e SBT.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal REDEGN
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