“Alarmados pela intensificação atual da intolerância, da violência, do terrorismo, da xenofobia, do nacionalismo agressivo, do racismo, do antissemitismo, da exclusão, da marginalização e da discriminação contra minorias nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas, dos refugiados, dos trabalhadores migrantes, dos imigrantes e dos grupos vulneráveis da sociedade e também pelo aumento dos atos de violência e de intimidação cometidos contra pessoas que exercem sua liberdade de opinião e de expressão, todos comportamentos que ameaçam a consolidação da paz e da democracia no plano nacional e internacional e constituem obstáculos para o desenvolvimento.”
Ainda que pareça ter sido escrita sob o impacto das tragédias atuais, essa longa frase data do breve período de relativa calmaria no mundo transcorrido entre a queda do Muro de Berlim e os atentados terroristas da Al-Qaeda. Ela integra o preâmbulo da Declaração de Princípios sobre a Tolerância, aprovada pela Conferência Geral da Unesco em 16 de novembro de 1995. Sua tradução ao português foi uma cortesia da USP, no marco das atividades preparatórias do seminário internacional Ciência, Cientistas e a Tolerância, organizado pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação, em colaboração com a Unidade da Tolerância da Unesco, em junho de 1997. A data de aprovação da Declaração, 16 de novembro, passou a ser comemorada anualmente como o Dia Internacional da Tolerância.
Um marco da excruciante jornada da humanidade rumo à tolerância é uma obra do poeta, dramaturgo e crítico Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781). Considerado um dos textos fundamentais do Iluminismo alemão, ela foi escrita no cenário de uma acirrada disputa teológica do luteranismo. A querela envolvia Lessing, ele mesmo filho de um arquidiácono e teólogo luterano, e o pastor Johann Goeze, líder espiritual da então cidade-estado de Hamburgo. Após a censura dos seus textos que criticavam o dogmatismo ortodoxo e a intolerância do referido pastor, acrescida da proibição de escrever sobre temas religiosos, Lessing decide transferir a controvérsia para o teatro. Elabora então Nathan, o Sábio, um poema dramático em cinco atos, destinado a tornar público o seu ideal de humanismo tolerante.
O eixo da obra é uma questão recorrente, que mobiliza a humanidade desde tempos imemoriais e permanece candente até os dias de hoje: qual das religiões é a verdadeira? Competições sobre qual a doutrina autêntica ocorrem ao longo da história por diversos meios, desde polêmicas intelectuais tout court e debates públicos “com cartas marcadas” (como a famosa Disputação de Tortosa, na Espanha do século 15), até conflagrações fratricidas e guerras abertas.
A narrativa de Lessing tem como pano de fundo os enfrentamentos entre cristãos, muçulmanos e judeus durante as Cruzadas, na sempre disputada cidade de Jerusalém. O conflito é personalizado em Nathan, um rico judeu, num cavaleiro templário e no sultão Saladino. Personagem-chave é a jovem Recha, filha adotiva de Nathan, que é salva de um incêndio pelo templário cristão. Este, por sua vez, deve a sua vida a Saladino, que o poupou da morte reservada aos prisioneiros infiéis pela semelhança física do cavaleiro com o seu falecido irmão.
No entretempo, a corte do Sultão enfrenta um grave problema financeiro e conta com a fortuna de Nathan para superá-lo. Saladino o convoca ao palácio, mas, ao invés de lhe solicitar explicitamente a ajuda, pergunta a Nathan qual a religião verdadeira. Percebendo o ardil, Nathan faz uso da Parábola do Anel. Dotado do poder mágico de tornar o seu dono apreciado por Deus e pelos seres humanos, o anel era passado em cada geração pelo pai ao seu filho predileto. Até chegar a vez de um pai que, amando igualmente os seus três filhos, prometeu-lhes separadamente a relíquia poderosa. Para “cumprir a promessa”, mandou confeccionar duas réplicas perfeitas do anel e, em seu leito de morte, deu um anel a cada filho.
Os irmãos passam a querelar sobre qual seria o anel genuíno. Um juiz, ao qual foi levado o caso, argumentou que era impossível naquela altura saber qual o original. E que, talvez, o original fora perdido e os três anéis eram réplicas. A única forma que os filhos tinham de verificar a legitimidade do anel recebido era viver uma vida que os levasse a ser apreciados por Deus e pelos seres humanos, comprovando assim o poder do objeto que lhes foi legado.
Nathan então equipara o anel à religião: cada pessoa deve viver de acordo com os valores religiosos que recebeu de seus antepassados. Saladino imediatamente compreende a mensagem de equivalência entre as três religiões monoteístas abraâmicas (cristianismo, islamismo e judaísmo). E, impressionado pela humanidade de Nathan, pede que este lhe conceda a sua amizade, o que é prontamente aceito. Na sequência, Nathan toma a iniciativa e oferece um empréstimo generoso ao sultão. A ameaça existencial é superada, graças à sabedoria de Nathan.
Mas a trama continua. O templário se apaixona por Recha; contudo, Nathan hesita em consenti-la, o que enfurece o pretendente. Ao descobrir que a moça era filha adotiva de pais biológicos cristãos e havia sido criada “sem religião”, o templário pede conselho ao Patriarca cristão de Jerusalém. Este decreta que Nathan seja queimado vivo, por haver induzido Recha à apostasia.
Todavia, são encontrados registros que indicam que Recha e o templário eram irmãos, o que explicava a hesitação de Nathan em consentir no casamento. E, na cena derradeira, revela-se que os dois jovens eram, na verdade, filhos do irmão do sultão, daí a parecença física que levou o templário a ser poupado de morte. Final feliz, com todos – judeus, muçulmanos e cristãos se abraçando.
A primeira encenação da peça ocorreu apenas dois anos após a morte de Lessing. Essa obra de apologia à tolerância se mantém relevante nos séculos subsequentes. Com o advento da cinematografia, é feita uma adaptação, e Nathan, o Sábio, lançado em 1922, torna-se um clássico do cinema mudo, com grande aceitação pelo público. Todavia, a intolerância interfere no seu destino: o filme é acusado de fazer “propaganda do judaísmo”, pelo que é censurado e suprimido após a ascensão do genocida Hitler ao poder.
O filme foi considerado perdido por cerca de sete décadas. Uma cópia foi miraculosamente encontrada em Moscou em 1996, após a debacle do regime soviético. Uma versão restaurada dessa cópia foi exibida há exatos dez anos, durante a 37ª Mostra Internacional de Cinema, em projeção ao ar livre no Parque do Ibirapuera.
Merece registro uma feliz coincidência: a primeira celebração do Dia Internacional da Tolerância ocorreu no mesmo ano da descoberta da cópia remanescente do filme, fruto de uma obra que ajudou como poucas a pavimentar o ainda incompleto caminho rumo à tolerância. Como no texto de Lessing, quando tudo parece perdido, eis que a centelha da tolerância reaparece e desencadeia um avanço expressivo na penosa caminhada da humanidade rumo a um mundo melhor.
A expansão do espectro de tradições valorizadas entre nós para além das três religiões abraâmicas aporta a riqueza da perspectiva africana/afrodiaspórica. Uma dessas práticas é um evento anual inspirado em celebrações das primícias na África austral. Festejado na semana final do ano gregoriano, o Kwanzaa afirma valores familiares e sociais africanos. Tanto o nome quanto a celebração foram idealizados, em 1966, por uma professora da Universidade Estadual da Califórnia.
A Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência do IEA contribui para essa visão ampliada da tolerância pela organização do inédito Festival Kwanzaa-Escrevivência, que celebra a titularidade da professora e escritora Conceição Evaristo (2022-2023), propondo dialogar sobre a presença negra na USP. O festival, que acontecerá entre os dias 13 e 15 de dezembro de 2023 no Itaú Cultural, na EACH e no IEA, pretende ser um encontro de partilhas acadêmicas e, também, de expressões musicais, cênicas, plásticas, literárias e artísticas em geral, para refletir e repensar de forma coletiva as noções de união, autodeterminação, trabalho coletivo e responsabilidade, economia criativa, propósito, criatividade e fé – princípios de Kwanzaa. Contamos com a importante parceria da Fundação Itaú de Educação e Cultura (pelos seus braços Itaú Cultural e Itaú Social) e da Fundação Tide Setubal.
Ao realizar esse festival de caráter não religioso numa universidade laica, avançamos mais um trecho no caminho trilhado por Lessing e outros precursores rumo a um mundo que abrace decididamente os valores da Declaração de Princípios sobre a Tolerância.
Guilherme Ary Plonski, professor da Escola Politécnica e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP
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