Que sejam convocados todos os patronos, senhorios e donatários. Tragam seus manuais de rádio para serem queimados. Porque um espectro ronda os tímpanos.
Por um rádio que seja esquisito como os negros que se rebelam contra os “bons senhores”.
Por um rádio esquisito como os povos que sonham com outro mundo e outros fins de mundo. Seja esquisito como os LGBTQIA+ diante dos digníssimos da sala de jantar. Por um rádio que rejeite ser palatável como os ultraprocessados, mas seja complexo como a flor, a fruta, a cor. Especiaria de nativos. Veneno e antiveneno.
Por um rádio que seja raro, aquilatado mas gratuito. Analfabeto. Decifrador de códigos secretos.
Por um rádio que provoque careta, amargo, doce, ácido, nunca morno. Que seja pobre e majestoso.
Por um rádio que derrube suas antenas número 1, 2 ou 3. Que seu sinal seja de um zero à esquerda, marginalizado, não marginalizante. Que cultue o incrível e as muitas formas de ser crível. Que seja louco, completamente louco ante a patologia do normal. Que seja tantã. Que entoe lamentos, ladainhas. Que estronde batucadas, dissonâncias e desafinos, como o mundo. Que ferva de alegria e, subitamente, encare, perplexo, as interrogações do devir.
Por um rádio que erre muito mais do que acerte, que experimente. Que seja menos um poema em linha reta e mais versos que levam e dão porrada. Ridículo, se necessário, nunca burocrático.
Por um rádio não canônico. Que seja desaforado, destrambelhado, pluriétnico, hesitante, reticente, impulsivo, amante dos sotaques, perigoso.
Que à milésima pergunta “ai, o rádio vai morrer?”, se possa responder “tomara que sim!”.
Por um rádio que se escove a contrapelo, crespo, arrepiado. Por um rádio de gosto duvidoso, por que não? Desde que não seja de bom gosto. Nunca cidadão de bem. Rádio de beco, de praça, de ribeira, amigo de anônimos, irmão de acorrentados, companheiro de rebeldes, camarada de estropiados.
Por um rádio que vomite seus manuais para aliviar a pança. E, mais leve, invente. Por um rádio afeito mais à felicidade que à normalidade. Por um rádio não radiofônico, antirradiofônico, e que negue sua própria negação.
Por um rádio desobediente. Por um rádio criança, velho, feio, de cair o queixo, irresistível.
Por um rádio que sangre, menstrue, trinque suas fibras, derreta de suor, grite se preciso for.
Por um rádio que provoque, esdrúxulo, magnânimo, misterioso, como as veredas, como as quebradas.
Por um rádio para além do radiofônico. Que cuspa as soluções mercadológicas. O tempo do mercado, a voz do mercado, a dicção do mercado, o lado A, o lado B, o bom-mocismo de elevador.
Por um rádio que perturbe, ácido lático, explosão de sinapses, ocitocina, hora do parto, chute no ângulo. Nunca música de fundo, nem cereja de bolo.
Que se atrevam a pôr pra fora suas cabeças, patronos, senhorios e donatários, desde que sejam devorados com suas penas e renasçam na forma de moleques olhando o dia cair, em frente ao mar de novo sem dono.
Que o rádio morra. E se torne seu próprio pai, sua própria mãe, seu próprio irmão, seu tio bêbado. Endoidecido de fúria e de amor. Sujo e puro. Louco de futuro.
Por Gustavo Xavier, jornalista e produtor musical da Rádio USP
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