O Mapa de Conflitos: Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), contabiliza o sofrimento de agricultores familiares, pescadores artesanais e ribeirinhos que vivem nas proximidades da Serra da Bicuda, em Sento Sé, no sertão baiano.
Atualmente, segundo levantamento da Articulação das comunidades atingidas, a região possui 12 comunidades tradicionais e 1.857 famílias.
Embora essa área seja considerada patrimônio natural e cultural da região semiárida, ela enfrenta conflitos a partir da atuação de órgãos governamentais que emitem licenciamentos de barragens, hidrelétricas e mais recentemente com a instalação de uma mineradora.
"A gente diz que é difícil um raio cair duas vezes no mesmo lugar, mas aqui caiu" diz Maria Francisca, professora e moradora do conjunto das comunidades Aldeia, Pascoal e Limoeiro (APL), localizadas no extremo norte baiano, às margens do rio São Francisco. As famílias que vivem ali, a 693 quilômetros de distância da capital (Salvador), no meio da caatinga, com dificuldade de acesso e infraestrutura precária, foram esquecidas pelas autoridades municipais e estaduais.
O "primeiro raio" atingiu os moradores nos anos 1970, durante a ditadura empresarial-militar. Quando a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), responsável pela construção da barragem de Sobradinho, expulsou aproximadamente 72.000 beiradeiros [1], o ditador da vez era o general Emílio Garrastazu Médici. Esse período traz recordações tristes para Francisca que, ainda criança, acompanhou a retirada à força de familiares e amigos de suas roças, fruteiras, criatórios e imóveis.
"Muita gente chorava, carregando trouxas de roupas nas costas ou acomodando seus pertences em cima de jumentos. Minha tia foi puxada pelo marido de dentro da casa quando as águas alcançaram as portas. Ela não queria sair de jeito nenhum" – recorda.
A professora também ressalta que viu pessoas embarcando em um vapor para serem levadas a Minas Gerais e outros estados.
"Quem ficava chorava, quem ia também chorava. Sabe aquele desespero? Não não vale nem a pena recordar" – lembra.
Quem permaneceu na região foi jogado em esparsos galpões construídos pela Chesf no meio da caatinga, em janeiro, tempo de chuvas no sertão. Quem não cabia nos depósitos humanos recebia lona preta e se abrigava como podia, sem nenhuma perspectiva de futuro, ou recebia o valor das passagens para emigrar.
O sofrimento não terminou por aí. As lágrimas traduzem a angústia da professora, que desabafa:
"Não foi suficiente a Chesf acabar com a nossa vida. Agora chegou uma empresa de mineração e a gente sabe que a situação é bem pior"
A mineradora em questão é a transnacional Tombador Iron, sediada na Austrália e sócia de uma empresa na Singapura, país com melhor Índice de Desenvolvimento Humano da Ásia. As duas companhias têm como representante no Brasil Gabriel da Cunha Oliva, também diretor geral da Colomi Iron Mineração S.A e sócio da Proliva Geologia e Mineração, baseada no Rio de Janeiro.
A empresa de mineração iniciou os trabalhos em Sento Sé durante a pandemia de covid-19 para espanto da população local, que não recebeu nenhum comunicado oficial da prefeitura ou da mineradora. Foi um alvoroço:
"Quando a gente veio perceber a mineradora já estava se instalando. E simplesmente ficou" – conta a dona de casa Marismar dos Santos, 39 anos, casada e mãe de três filhos.
Entre março de 2020 e dezembro de 2021, Sento Sé registrou 1.220 casos de covid e 49 óbitos [2]. A taxa de letalidade foi de 3,85%, superior à média do estado (2,16%).
Licenciamentos e impactos
O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) concedeu a licença de instalação para o empreendimento em agosto de 2020. Desde então, segundo o relatório da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foi registrada uma série de impactos socioambientais e danos à saúde da população. A primeira lista inclui, assoreamento de recurso hídrico, desmatamento e/ou queimadas, erosão do solo, pesca e/ou caça predatória, atmosférica, sonora, do solo e de recurso hídrico.
Quanto à saúde, conforme o Mapa de Conflito, há casos de acidentes motivados pelo aumento de tráfego na região, piora na qualidade de vida, doenças transmissíveis, insegurança alimentar e coação física.
O trânsito na BA 210 é intenso nos 191 quilômetros de Juazeiro até Sento Sé, devido à grande quantidade de carretas carregadas com minério de ferro. O asfalto termina lodo após da sede do município em direção às comunidades próximas à mineradora. As carretas de transporte de minério trafegam em comboios de até 10 veículos e levantam grandes nuvens de poeira, tirando a visibilidade dos moradores que se deslocam em carros e motos. Eles são obrigados a parar e deixar a poeira baixar a fim de evitar colisões e outros tipos de acidentes.
Aderbal Borges Santiago, casado e pai de dois filhos, nasceu na comunidade Retiro de Baixo, que fica a 32 quilômetros do centro do município. Ele é servidor público e também cultiva milho, feijão, mandioca, melancia, em um pedaço de terra herdado dos seus pais. Todas as semanas, ele leva a mãe para fazer fisioterapia na cidade. Depois que a mineradora se instalou, Aderbal passou a ter medo de pegar a estrada de chão por causa dos caminhões.
"Uma vez quase bati no fundo de uma carreta porque ela ia com as luzes traseiras todas apagadas. Toda minha família estava no carro. Podíamos ter morrido" – relata.
A mineradora não trouxe nenhum benefício para a comunidade, garante o servidor agricultor, que reclama das falsas promessas da direção da Tombador Iron:
"O que chegou pra nós foi isso, poeira. O emprego, o dinheiro, as coisas boas que prometeram até agora não chegou pra gente" – reclama.
Uma poeira fina cobre tudo. Na escola comunitária, as faxineiras limpam tudo bem cedo às seis horas da manhã. Quando alunos e professores chegam às 7h30min já está tudo empoeirado de novo. Os casos de alergia e problemas respiratórios ocorrem com frequência.
"A gente não estava acostumado com isso" – lamenta Francisca.
Atualmente, uma das principais reivindicações é o asfaltamento da estrada que percorre a área rural. Há três anos, uma comissão formada pelos moradores se reuniu com o atual secretário de administração Juvenilson Passos, ex-prefeito e marido da atual prefeita Ana Passos. Os participantes protocolaram um ofício e Juvenilson prometeu, mas não cumpriu, tomar providências.
Sem a Tombador Iron Mineração e a prefeitura reduzirem os impactos dos problemas gerados pela extração de minério, os moradores das comunidades tradicionais decidiram, no início deste ano, bloquear a estrada e impedir a passagem de carretas e carros da mineradora. Durante doze dias, eles acamparam no local, dormiram ao relento, suportaram o ataque de muriçocas e prepararam alimentos em um fogão improvisado. Mais uma vez a comunidade não foi ouvida e os manifestantes foram retirados do acampamento por policiais.
A omissão das autoridades não se justifica. A Constituição de 1988, no artigo 20, parágrafo primeiro estabeleceu que é devido aos estados, ao Distrito Federal, aos municípios e aos órgãos da administração da União, a participação no resultado da exploração de petróleo, gás natural, recursos hídricos para geração de energia e outros recursos minerais. No caso da extração de ferro, é prevista uma alíquota de 3,5% no caso da extração de minério de ferro.
Segundo a Agência Nacional de Mineração, os recursos originados da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), pagos pelas empresas mineradoras, devem ser aplicados em projetos, que direta ou indiretamente revertam em prol da comunidade local, na forma de melhoria da infraestrutura, da qualidade ambiental, da saúde e da educação. É vetada a aplicação dos valores recebidos pela prefeitura em pagamento de dívida ou para pagar salários de servidores.
Da instalação da Tombador Iron em Sento Sé, em 2020, o valor CFEM pulou de R$ 110.772,60 para R$ 5.934.246,41, ou seja, um aumento de 5.357,14%. No entanto, as comunidades se queixam de que nada foi investido na região. O aumento do valor da compensação ano a ano pode ser visto no quadro abaixo, cuja fonte é o Observatório da CFEM, da Agência Nacional de Mineração.
Notas de rodapé
[1] Os beiradeiros fazem parte de comunidades tradicionais cujo modo de vida está relacionado ao ciclo de enchentes e vazantes do rio São Francisco. Entre os expulsos estavam 58 mil camponeses.
[2] Os dados são da Secretaria Estadual de Saúde e da iniciativa Brasil
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