Há 50 anos, o Secos e Molhados desabrochou uma rosa radioativa na paisagem musical do Brasil. Sonora, aquela flor irradiou melodias lisérgicas que tomaram conta de todo o país.
A “antirrosa atômica”, do poema “Rosa de Hiroshima”, escrito por Vinicius de Moraes em 1946, se tornou uma canção do primeiro disco da banda, que desferiu um golpe sorrateiro, mas não menos contundente, na ditadura militar.
Hoje, “Secos e Molhados” representa a expressão máxima do fenômeno artístico mais impactante do início dos anos 1970. À androginia das interpretações de Ney Matogrosso, se somaram os violões de Gérson Conrad e de João Ricardo, que também criava as melodias para obras de poetas consagrados. As comemorações do cinquentenário, no entanto, são tímidas.
Um show reunindo os três artistas está descartado. Desde os anos 1980, o trio recebe propostas milionárias, de uma TV alemã à Prefeitura de São Paulo, para tocar juntos, mas a falta de entendimento dos integrantes permanece.
Ney e Conrad mantêm contato. Neste ano, até gravaram juntos uma música, “O Fio do meu destino”, muito pelo ímpeto agregador de Rogério Batalha, o autor da letra.
“Primavera nos dentes”, livro de Miguel de Almeida que conta a história da banda, foi relançado pela editora Record. O documentário de mesmo nome, agora previsto para outubro, quase foi proibido de ser exibido no Canal Brasil.
CARETICE João Ricardo continua afastado dos antigos parceiros. Ele tentou proibir, na Justiça, o uso das canções no filme, mas acabou perdendo. Há 10 anos, o músico já havia proibido o uso de sua imagem, que acabou literalmente apagada, da autobiografia de Conrad.
“Achei uma caretice dele. Na verdade, entendo o lado dele. Dou a minha versão da história, e o Gérson dá o lado dele. Ele foi o vilão. Tem medo de ser visto como vilão, mas foi. Ele e o pai dele. E tem medo de isso ser exposto”, diz Ney. João Ricardo não respondeu aos contatos da reportagem.
No fim dos anos 1960, Conrad e João começaram o Secos e Molhados. Fãs de rock, Bob Dylan e Crosby, Stills, Nash & Young, moravam há menos de 100 metros de distância, nos Jardins, em São Paulo.
Conrad, que estudou música erudita, diz que João, português e filho do poeta João Apolinário, teve a ideia de musicar poemas de autores consagrados, mas tinha consciência de não ter talento para ser o vocalista.
“Era um músico limitado, mas tinha uma criatividade ímpar, e aquilo me fascinava”, afirma. Por isso, os dois saíram à procura de uma voz aguda, mas que não fosse feminina. A compositora Luhli, autora da letra de “Fala” e “O vira”, e amiga de João, apresentou Ney.
O encontro ocorreu na casa dela, no Morro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, em 1970. “Ficamos encantados, aquele timbre de voz dele. E a recíproca foi verdadeira”, diz Conrad.
Um ano depois, Ney se mudou para São Paulo, onde viveu uma maratona de ensaios com o grupo. “Tomei 20 ácidos até o dia em que entrei na banda. Quando fui para lá, nunca mais tomei. Não queria que achassem que a minha arte vinha da droga. Tomei ácido para me preparar para ir para lá”, ele afirma.
Da criatividade de João, surgiram as melodias para “Rondó do capitão”, poema de Manuel Bandeira incluído no livro “Lira dos cinquent’anos”, de 1940, e “Amor”, escrito pelo pai do músico. Já Conrad musicou “Rosa de Hiroshima”, que se apresentou para ele de maneira improvável.
VINICIUS DE MORAES Certo dia, um livro com a obra de Vinicius de Moraes, que estava em sua escrivaninha, caiu aberto na página do poema. “Tínhamos tomado a decisão de fazer um trabalho altamente politizado, porém não partidário. Ali eu tinha um trunfo na mão”, diz Conrad.
A natureza metafórica dos poemas manifestava, de modo subliminar, a insatisfação dos artistas com o regime militar. Ao mesmo tempo, Ney fundava uma linguagem performática própria. No primeiro show do trio, na Casa de Badalação e Tédio, para 80 pessoas, Ney cobriu o rosto pela primeira vez, com purpurina.
Aliado ao figurino primitivista, interpretou as canções com danças andróginas, manifestando o desejo pela liberdade sexual. Sua coreografia malemolente desenhava curvas no ar, formas distantes da retidão da marcha militar e da ordem repressora. Tal subversão se estendia à impureza radioativa das canções, em gênero e expressão.
As composições de “Secos e Molhados” estavam quase prontas quando eles incorporaram baixo, bateria e uma banda com músicos que tocavam numa peça em que Ney atuava. Em 1972, lotaram teatros da capital paulista até que uma reportagem escrita por Moracy do Val, que depois veio a ser empresário do grupo, os levou a fechar com uma gravadora, a Continental.
Os arranjos foram desenvolvidos e testados pela nas apresentações e ensaios. O baixista argentino Willy Verdaguer, diz Miguel de Almeida, criou os riffs de “Sangue latino” e “Mulher barriguda”. Também são nítidas as contribuições do pianista Emilio Carrera, do baterista Marcelo Frias – este, é o quarto elemento na capa do álbum –, do guitarrista John Flavin e do flautista Sérgio Rosadas.
FORA DO PADRÃO Em duas semanas, o álbum estava gravado. “Os técnicos ficavam incomodados porque a gente estava testando sons que não eram o padrão da época”, diz Conrad. “As pessoas até hoje e perguntam: ‘Como vocês conseguiram gravar (o disco) em quatro canais?’”
Entre as novidades adquiridas no estúdio estava o solo de “Fala”, feito em um teclado moog por Zé Rodrix, e criado de improviso nas gravações. A sonoridade sintética daquela máquina era uma novidade no começo dos anos 1970, de caráter futurista e bastante usada fora do Brasil em discos de rock psicodélico.
Depois da gravação no Estúdio Prova, as aspirações artísticas de Ney mudaram. Até então, o artista era um hippie que só pensava em ser ator.
Além de “Rosa de Hiroshima” e “Fala”, o álbum “Secos e Molhados”, lançado em agosto de 1973, apresentou “Sangue latino”, com letra de Paulo Mendonça. O folclore português de “O vira” se chocou com o rock and roll de “Mulher varriguda”, ainda que as faixas não se limitem a um só ritmo.
LENNON E MCCARTNEY Em geral, as canções se assemelham pelo contexto contracultural, traduzido por exemplo na distorção das guitarras elétricas. O canto em uníssono e em oitavas distintas representava a abertura a novos planos e realidades, tal como a experiência das drogas alucinógenas.
Ney fazia a voz aguda, João a grave, e Conrad transitava entre eles. Chamado pela imprensa de George Harrison do Secos e Molhados, ele era sonoramente e pessoalmente o elo entre as personalidades fortes de Ney e João, assim como Lennon e McCartney.
Em cena, Ney encarnou essa música insinuante. O som estranho se tornava, nele, um corpo estranho ao regime. Combinando poesia, música e dança, a arte do Secos e Molhados era de difícil apreensão, mesmo para a censura.
A expressão corporal do vocalista, diz Conrad, os contagiou. “Quando eu e João percebemos que os trejeitos do Ney atraíam o público, nos aproximamos desse tipo de performance. Eu, que era mais duro, comecei a me soltar”.
Os rostos pintados captavam o zeitgeist da época. No começo dos anos 1970, David Bowie explorava a androginia em “Ziggy Stardust”, mesma época em que os punks nova-iorquinos do New York Dolls usavam roupas femininas. Pouco depois, o Kiss despontou pintando o rosto também de branco.
Em três meses, lembra-se Conrad, o disco vendeu 360 mil cópias. Em 1974, foram mais de 1 milhão, ano em que o Secos e Molhados se tornou a primeira banda a desbancar Roberto Carlos do topo da lista Nopem de álbuns mais vendidos desde que ela começou a ser feita, em 1965, segundo o livro “Pavões misteriosos”, de André Barcinski.
SUCESSO DE MASSA Foi um sucesso pop de massa e imediato sem precedentes na da música brasileira. Eles estavam na TV, eram capa de revista, causavam tumulto quando reconhecidos em locais públicos e o sucesso culminou num show histórico no Maracanãzinho, em 1974. Foram 369 apresentações no espaço de um ano.
Ao mesmo tempo, os desentendimentos apareciam. O biógrafo Miguel de Almeida diz que João Ricardo chegou a dar chutes em Conrad nas escadarias de uma casa de shows por não querer que a banda tocasse “Rosa de Hiroshima”, pedida pelo público, no bis.
“Quando somos inocentes, nós acreditamos na palavra das pessoas”, diz ele. O trio havia quebrado o pacto, firmado no início da carreira: todo o dinheiro seria partilhado igualmente entre os três. Em dado momento, Ney quis até ganhar um pouco mais. “Eu sabia que quem atraía o público era o maluco que dançava pelado, então achei que tinha de ganhar mais”, afirma.
NOVOS RUMOS Também em 1974, o recém-estreado “Fantástico”, da Globo, que havia incluído números musicais do Secos e Molhados em sua programação, lançaria o segundo disco da banda, com um clipe de “Flores astrais”. Ney, contudo, já havia decidido seguir carreira solo.
Enquanto isso, João Ricardo tentava ditar os rumos da banda. Numa viagem ao México, substituiu o empresário Moracy do Val pelo próprio pai.
Miguel de Almeida se encontrou algumas vezes com João Ricardo para escrever a biografia. A sensação, ele diz, é de que o músico quer “ser o único proprietário da história da banda e de seu fim”.
Recentemente, diz Almeida, o português já chamou Ney de “mulher barbada” e afirmou que o vocalista, um dos grandes nomes da MPB, não fez nada relevante após a saída do Secos e Molhados.
Sem Ney e Conrad, que gravaram o segundo álbum do Secos e Molhados, o grupo seguiu com João e diversas formações. Nunca chegou perto do sucesso do disco de 1973.
HISTÓRIA EM ABERTO ”Faz 50 anos que a banda acabou, e o João fica com essa coisa mimada”, diz Almeida. Ele cita uma fala de David Crosby, ídolo do português, no filme “Echo in the Canyon”, para ilustrar a situação.
“Perguntam por que o Crosby brigou com os parceiros. Ele diz que era um idiota, com 20 e poucos anos você faz qualquer besteira. Era o caso do João. Mas ele não se perdoa. Não tem essa humildade.” Nesse impasse, a memória da banda ainda se espraia na sociedade brasileira, com uma história em aberto. “A mãe do João dizia que era ‘mãe do Secos e Molhados’”, diz Conrad. “Na época, a gente achava engraçado, mas agora entendemos de outro jeito.”
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