O cantor, sanfoneiro, o Rei do Baião, Luiz Gonzaga moldou um imaginário do Nordeste na música, mas também tinha um projeto de Nordeste. E ele próprio fazia questão de executá-lo. Na sua adorada Exu, Chapada do Araripe construiu o primeiro posto de gasolina e um complexo turístico com pousada e museu – o Parque Aza Branca.
Acreditando na educação, pagava ônibus para levar os estudantes para a faculdade na vizinha Crato, no Ceará. Quando o primo vaqueiro Raimundo Jacó, nasciddo e criado na Fazenda Araripe, foi assassinado e o crime ficou impune, em 1954, Gonzaga cantou uma das suas canções mais bonitas:,A morte do vaqueiro, composição de Nelson Barbalho. Mas não ficou só nisso.
Em 1971, o então pároco de Serrita, padre João Câncio, o procurou e, juntos, deram forma à Missa do Vaqueiro no Sítio Lajes, onde Jacó trabalhou e foi encontrado morto, a 35 quilômetros do centro da cidade, no caminho para Exu. Câncio era um padre progressista, cheio de ideias, que incorporava a cultura da região nas suas missas. Nas mãos do “padre vaqueiro” e de Gonzagão, a missa era não só uma homenagem a Jacó, mas um grito contra as injustiças e impunidades contra o povo mais pobre, em meio a tantas brigas sangrentas por terras e poder político no Sertão.
O que se desenvolveu ao longo dos anos 1970 e 80 é um mosaico da iconografia sertaneja: a figura do vaqueiro trajado de couro, o cortejo a cavalo, o altar com as peças de couro no ofertório. Ainda havia as músicas especialmente compostas para a ocasião por Janduhy Finizola, os poemas e repentes de Pedro Bandeira, também um dos fundadores da missa, os lindos e quase infinitos aboios. Tudo envolvido na liturgia católica, na comunhão do religioso com o sagrado gonzagueano.
À missa, foram se incorporando shows de artistas do forró pé de serra. Foi, por muito tempo, uma festa e uma celebração para os vaqueiros, suas famílias e os aficionados pela ideia do Nordeste vivo, resiliente, festeiro e justo de Gonzaga e seus seguidores.
ANO 2023-O comentário em Serrita é sobre a maior Missa do Vaqueiro já vista. É número para todo lado: 500 vaqueiros no cortejo, mais de 400 mil pessoas nos quatro dias de eventos. E o show de Gusttavo Lima o maior já visto por ali, um público de 120 mil pessoas, mais de 3h de congestionamento para sair do Parque João Câncio, no Sítio Lajes. “Foi um exagero, uma coisa nunca vista por aqui”, diz o vaqueiro Mário Artur, que participa da Missa do Vaqueiro desde a primeira edição.
O prefeito de Serrita, Aleudo Benedito (MDB), na madrugada de quarta para quinta-feira, ele teve um trunfo: foi chamado ao palco por Gusttavo Lima, e, ao lado da primeira dama, discursou para o público. “A prefeitura agradece seu show. Você está realizando um sonho de muitos serritenses, obrigado por tudo, por ter adotado a cultura do vaqueiro, nossa história”, falou no microfone.
Havia, no entanto, uma liminar que proibia que o prefeito subisse ao palco, usando a Missa do Vaqueiro com possíveis fins políticos. Há uma briga judicial ao redor do evento deste ano: de um lado, a Fundação Padre João Câncio, que por 22 anos fez a produção da festa, do outro, a prefeitura de Serrita, que conta com o apoio do Governo do Estado e da Diocese de Salgueiro.
No cerne da questão, a descaracterização da Missa do Vaqueiro de um evento tradicional sertanejo, com o vaqueiro como protagonista, para um mega festival de música, no estilo da gigantesca ExpoCrato. E um gasto vultoso, que ultrapassa os R$ 3 milhões, em um cidade com apenas 18,2 mil habitantes e 54,5% da população vivendo com menos de um salário mínimo por mês.
Os shows no palco principal se encerraram na noite de sábado. A Marco Zero esteve na Missa do Vaqueiro no domingo pela manhã. Muitos quilômetros antes do Sítio Lajes começa a movimentação intensa de carros, ônibus e caminhões carregando gente e animais. Nos acostamentos, homens, mulheres e crianças seguem montados em seus cavalos.
Recém-chegado à diocese de Salgueiro – da qual a paróquia de Serrita faz parte – o bispo Dom José Vicente já começou a celebração se desculpando. Era a primeira vez dele ali, mas ia precisar fazer uma missa enxuta pois, sem se aperceber das longas distâncias do Sertão, havia marcado um compromisso em Araripina – que fica a 178 quilômetros de Serrita – às 16h.
Logo depois, cometeu uma gafe: chamou Francisco Assis Domingos de filho de Raimundo Jacó. Não é: Assis Vaqueiro, como é conhecido, estava no palco representando os vaqueiros, mas não é parente do primo de Gonzagão. Único filho ainda vivo de Raimundo Jacó, Vicente Jacó não compareceu à missa deste ano.
Na missa, os vaqueiros não pegaram o microfone – apenas um, para uma rápida leitura bíblica. O tradicional coral de aboios mal foi ouvido. A diocese não quis que músicas originais, compostas para a missa por Janduhy Finizola, fossem executadas. “Não será permitida a ‘Toada de Gado’ e o ato a que se destina”, diz mensagem da diocese enviada para Helena Câncio – que se casou com João Câncio nos anos 1980, quando ele abandonou a batina, e comanda a fundação que leva o nome do marido.
Desde o ano 2000, ela estava à frente da organização da Missa do Vaqueiro. Com as exigências do novo bispo, ela desistiu de participar da missa neste ano. Outra mudança drástica estabelecida pela paróquia de Serrita e a diocese foi no ofertório: “Os vaqueiros poderão depositar indumentárias e apetrechos próprios dos vaqueiros, contudo, em silêncio e sem manifestação. Não serão lidos textos”, diz outra mensagem da diocese enviada para Helena.
Ainda que tolhida, houve emoção na missa, principalmente para quem estava ali pela primeira vez. Do altar, se via um mar de vaqueiros e vaqueiras trajados de couro. Velhos, moços, meninas. Chocalhos ressoavam no ar nas respostas ao rito.
O mais bonito mesmo foi a hora do ofertório, certamente por ser a única com alguma participação dos vaqueiros e vaqueiras. Sem sair da sela dos cavalos, eles cruzam o palco e fazem das suas peças de couro uma oferta ao altar. Com os aboios dos vaqueiros e os repentes deve ser muito mais emocionante. Mesmo assim, é um momento intenso, com perneira, gibão, alforje, colete, chapéu, chicote, luvas, botas e outras peças sendo montadas uma a uma no altar.
Ao final da missa, que durou menos de duas horas, o bispo Dom José Vicente relembrou o tão importante e inadiável compromisso em Araripina para avisar que não tiraria fotos com os fiéis. Estava apressado.
Ficou a dúvida: algo deveria ser mais importante para um bispo da diocese de Salgueiro do que a Missa do Vaqueiro, a mais famosa do sertão?
LEGADO-No mesmo ano em que Gonzagão morreu, faleceu também João Câncio. A Missa do Vaqueiro ficava órfã em 1989 – Pedro Bandeira não se envolvia tanto na produção. Ao longo de 53 anos, o evento teve algumas organizadoras. A Fundação Quinteto Violado foi a responsável de 1976 a 1983. “Depois outra fundação tomou conta. Neste ano, o prefeito convidou o Quinteto e ficamos muito felizes”, contou o vocalista Marcelo Melo. A última vez do grupo no evento havia sido em 2014.
Na época em que o Quinteto Violado organizava a festa, não havia estrada com asfalto, nem energia elétrica no Sítio Lajes. Tinha que levar gerador. Apesar de dizer que não quer se envolver na polêmica entre a Fundação e a prefeitura, Marcelo considera que há uma descaracterização do evento.
“É uma festa que tem a ver com o grito de justiça do vaqueiro e por melhores condições de trabalho. Sempre batalhamos nesse caminho. Mas esses shows não têm nada a ver com a nossa realidade. Agora, tem a mídia que domina sobre a juventude e quer esse tipo de música, mas que não tem identidade cultural com a região. O importante é a emoção, a identificação cultural. A festa é para o vaqueiro”, diz.
Quando o Quinteto Violado parou de produzir a festa, o padre João Câncio assumiu tudo. Mas houve um afastamento quando ele se casou e, por conta das represálias da Igreja Católica, deixou o Nordeste. Quando faleceu, a missa também ficou por 11 anos sem uma produção. Nesses hiatos, foi a paróquia de Serrita quem assumiu, junto com a prefeitura, a Missa do Vaqueiro. Desde 2000 a Fundação João Câncio fazia quase tudo, privilegiando artistas regionais, do forró pé de serra.
O imbróglio entre a Fundação e a prefeitura de Serrita começou ano passado quando Aleudo Benedito tomou para si a organização da festa, com apoio do Governo do Estado e da paróquia, conduzida por um sacerdote de perfil conservador. Teve show de Wesley Safadão nos dias de festa pagã, mas quem organizou a missa em si foi a Fundação, com o então bispo Dom Magnus Henrique Lopes, que abraçava a causa do vaqueiro – ele foi transferido neste ano para a diocese do Crato (CE).
Em 2023, o prefeito foi mais longe. Tentou mudar o nome das festividades de Missa do Vaqueiro para “Festa do Jacó”. Como não tem a maioria da Câmara de Vereadores, não conseguiu. Mas montou uma área vip em frente e ao lado do imenso palco dos shows – coisa digna do carnaval no Marco Zero – com cobrança de ingressos. E não foi só Gusttavo Lima quem veio: teve show de Nattan – estouradíssimo no Brasil, com mais de 30 shows no mês de junho –, Simone, ex-dupla de Simaria e que está com tudo nos eventos do governo Raquel Lyra, Xand Avião, Priscilla Sena, entre outros.
A Fundação, então, entrou na Justiça questionando a cessão da prefeitura para explorar comercialmente o Parque Estadual João Câncio, como é chamado hoje o Sítio Lajes.
Na pequena cidade, há uma propagação imensa de boatos, difamando ambas as partes. Quase sempre, os boatos envolvem desvios de verbas públicas para festa. Uma das causas de boatos contra a Fundação é o não pagamento de muitos dos fornecedores da festa de 2019.
Helena Câncio afirma que não recebeu os R$ 500 mil então prometidos pela Empetur naquele ano. “Esse dinheiro era para fazer absolutamente tudo. Da limpeza do parque até a produção de shows. Desde 2015, o projeto vinha sofrendo com glosas (faturamentos recusados) de valores relativamente altos. Mas sempre comprovamos por A mais B os investimentos da Empetur, que na verdade nem davam para cobrir tudo. Em 2019, o Governo do Estado não pagou um real e estamos devendo”, lamenta.
Na missa, em entrevista à MZ, o prefeito Aleudo Benedito afirmou que a festa deste ano teve um custo total de mais de R$ 3 milhões e que desde o ano passado a Empetur triplicou o investimento na festa, passando para R$ 1,5 milhão. A prefeitura bancou os outros 50%, segundo ele. “Fizemos tudo sem jamais prejudicar o erário público do município, mantendo as contas e nossas obrigações em dia”, garantiu. “As atrações foram pagas uma parte pelo município e outra parte pela Empetur”, disse. No dia seguinte à festa, ele anunciou nas redes sociais o pagamento de 50% do 13º salário dos servidores da prefeitura.
A Marco Zero entrou em contato com a Empetur para saber o motivo das contas de 2019 da Fundação João Câncio não terem sido aceitas e também quanto foi investido na Missa do Vaqueiro deste ano. Assim que chegar a resposta, esta matéria será atualizada.
Sobre as críticas à descaracterização da Missa do Vaqueiro, o prefeito afirma que o público deu a resposta. “São opiniões contrárias a tudo isso que vivenciamos. A nossa gestão está transformando e dando uma roupagem nova aqui para toda estrutura desse evento. E o que aconteceu este ano? Colocamos o maior público. Buscamos recursos junto ao Governo do Estado, ao Governo Federal e agora Serrita já está incluída no calendário de eventos nacionais”, afirmou.
Como se nota, há novamente uma tentativa de tensionar as mudanças na festa para a disputa entre tradição e modernidade, tão comum ultimamente nas festas tradicionais nordestinas – vide o São João de Caruaru. É como se no Nordeste tudo tivesse que ceder às poderosas e irresistíveis forças populares do sertanejo, mantendo apenas um tiquinho de sua essência. Vale lembrar que recentemente um levantamento feito com Google Trends e YouTube mostrou que Pernambuco é o estado com o menor interesse em música sertaneja, com apenas 15% das buscas.
(E aqui a repórter abre um parênteses: uma boa forma de “modernizar” a Missa do Vaqueiro seria fiscalizar os maus tratos contra os animais. Sol a pino, e dois imensos bois Nelores, visivelmente extenuados, eram usados para que as pessoas tirassem fotos em cima deles. Um dos bois tinha uma argola no nariz e nela colocaram uma corda que o prendia a uma estaca. Exausto, o boi se deitou no chão e ficou com o focinho levantado, pois a corda era muito curta para que pudesse abaixar a cabeça. Uma maldade.)
Há dúvidas se é mesmo a afinidade com o gosto do público o que leva uma prefeitura de 18,2 mil habitantes no Sertão a gastar tanto na contratação de sertanejos como Gusttavo Lima e Simone. O Ministério Público solicitou da prefeitura de Serrita o fornecimento de vários documentos, incluindo planilha de todos os gastos com a festividade.
O MPPE afirma que serviços públicos básicos essenciais estão sendo postergados por alegação de incapacidade financeira do município de Serrita. Há diversos procedimentos extrajudiciais instaurados na Promotoria de Justiça de Serrita envolvendo demandas relacionadas à prefeitura. “Há, ainda, ações civis públicas ajuizadas perante o Poder Judiciário contra o município de Serrita para garantir tratamentos de saúde, fornecimento de leite, além de serviços de fisioterapia, fonoaudiologia e psicologia à população que necessita”, diz nota do MPPE.
O Ministério Público também recomendou que a prefeitura faça a atualização imediata de seu portal de transparência, divulgando informações sobre licitações e contratações públicas, em conformidade com a Lei de Acesso à Informação.
Ao ser questionada pela Marco Zero sobre a descaracterização da Missa do Vaqueiro, a governadora Raquel Lyra, disse que não tem participado das discussões. “Nosso propósito como governo é garantir que o evento possa acontecer. E a gente espera que haja sempre conciliação entre todos os atores envolvidos, que são super importantes na manutenção desta tradição, que são o poder público, o terceiro setor, a família do padre João Câncio, de Raimundo Jacó. Que possam estar todos juntos ano que vem e essas brigas sejam superadas”.
A reportagem é de Maria Carolina Santos-jornalista e texto publicado na integra A Marco Zero https://marcozero.org/missa-do-vaqueiro-vira-megaevento-com-show-de-gusttavo-lima/
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