As primeiros resultados do Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontaram que a população brasileira cresceu 6,5% desde o levantamento de 2010, chegando a 203 milhões. Apesar do grande número de pessoas, essa foi a menor taxa de crescimento anual já observada desde o início da série histórica do Brasil, em 1872.
O crescimento populacional, em descompasso com a capacidade de sua manutenção pela sociedade, tem preocupado pensadores há séculos, como Thomas Malthus (1766-1834). Mas em uma visão mais moderna, o professor Garrett Hardin publicou, em 1968 na prestigiada revista Science, o artigo A tragédia dos comuns, que inicia falando sobre a guerra nuclear, e tem o crescimento populacional como o tema central: “Um mundo finito pode suportar apenas uma população finita; portanto, o crescimento populacional deve eventualmente ser igual a zero”.
A tragédia em questão é exemplificada no artigo com uma metáfora sobre pastores: em um pasto aberto a todos, cada pastor tentaria manter o maior número possível de animais nas terras comuns; mas, se cada pastor tentasse aumentar seu rebanho, o pastoreio excessivo seria compartilhado entre todos!
Um exemplo prático dos bens de uso comum são as águas subterrâneas – aquelas encontradas abaixo da superfície, em aquíferos. Estas águas possuem vantagens em relação às superficiais, como as dos rios e lagos, pois em geral têm melhor qualidade natural, dispensando tratamentos químicos; exigem uma menor infraestrutura para a captação; podem ser construídos em módulos; possibilitam que as captações acompanhem as demandas; e têm um menor custo de operação. Além disso, costumam ser uma reserva confiável devido ao seu grande armazenamento, especialmente em períodos de estiagem, quando muitos rios reduzem suas vazões.
As águas dos aquíferos podem ser encontradas e explotadas (extração para o uso) em diferentes profundidades: quanto mais próximas, mais fácil o seu acesso e mais vulnerável à contaminação; e mais protegidas as águas (e difíceis de acessar) quando confinadas sob um aquitarde (camada geológica menos permeável).
Um dos desafios na gestão das águas subterrâneas é a chamada superexplotação: mais do que uma “retirada de águas superior à recarga”, é quando os impactos causados pelas extrações superam os benefícios ecológicos, econômicos e sociais.
Assim como na metáfora do pastoreio excessivo das terras comuns, as águas subterrâneas são encaradas como um recurso de acesso aberto. Especialmente em regiões tropicais, com chuvas e rios abundantes na maior parte do ano, há um negacionismo coletivo sobre a possibilidade de crises hídricas futuras – o que comumente ocorre junto ao (in)oportuno uso de poços irregulares.
Mas nessa “piscina comum” de recursos, onde a exploração de um usuário pode reduzir a disponibilidade de outros, normas e regulações nem sempre são suficientes para evitar a superexplotação: é necessário monitoramento e fiscalização; e junto a isso, de gestão e pesquisa. Ainda faltam estudos que estabeleçam adequadamente os limites de aquíferos, seus balanços hídricos e as interferências entre poços. Dada a complexidade da determinação destes dados para todos os locais, a delimitação de áreas críticas é um importante passo na gestão destas águas subterrâneas.
Quando Hardin publicou A tragédia dos comuns, em 1968, o mundo tinha 3,55 bilhões de pessoas; 55 anos depois, mais que dobramos nossa população e hoje somos mais de 8 bilhões de habitantes vivendo no planeta Terra. Mesmo que a população brasileira esteja crescendo mais devagar, segue aumentando, e o consumo per capita de água também. Assim, os aquíferos, que estocam mais de 97% de toda a água doce e líquida do planeta – e presente em quase toda a sua extensão, inclusive sob desertos –, têm sido a solução natural para auxiliar no desenvolvimento humano, bem como no enfrentamento dos problemas advindos das mudanças climáticas globais. Sob nossos pés, há um bem de uso comum.
Por Leonardo Capeleto de Andrade, pós-doutorando no Instituto de Geociências (IGc) da USP, e Ricardo Hirata, professor do Instituto de Geociências da USP
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