A intolerância religiosa manifesta um dos mais violentos atentados contra a vida. Uma vez praticada, afeta corpo e alma das pessoas e de todas das formas expandidas do sagrado que celebram a fé. Nas religiões de matrizes indígenas e afro-brasileiras as matas com toda a sua biodiversidade constituem os territórios do sagrado.
Nas tradições cristãs, atos e palavras, assim como os templos que reúnem fiéis são transpassados pela presença do divino. Quando a intolerância religiosa ofende ou ataca corpos e templos de celebração da fé, opera violações em escala imensurável.
No dia 10 de maio passado o Centro Espírita União, Amor e Caridade, localizado no município de Juazeiro da Bahia, foi violentamente atacado. Fundado no ano de 1947, a casa religiosa reúne uma das mais antigas e respeitadas comunidade umbandista juazeirense. Durante o ritual sagrado das quartas feiras a porta principal do Centro foi arrombada a socos, pontapés e pedradas. Entre o susto com a violência praticada e a partilha da fé com as ancestralidades daquela morada, as pessoas presentes preservaram a intimidade com o sagrado. As portas foram fechadas pacificamente e preces foram recitadas para abrandar os corações em fúria que atacaram as vidas que habitam aquela casa.
O episódio de ataque se repetiu no dia 11 de maio. Desta vez não havia movimentação humana dentro da casa. O local permanecia habitado pelas formas e forças ancestrais que guardam o axé do União, Amor e Caridade. Eram aproximadamente 20 adolescentes, todos os sexo masculino e moradores do bairro vizinho. Foram flagrados por câmeras de circuito de vídeo instaladas nas casas da vizinhança e por membros do Centro Espírita que estavam à espreita, receosos de novos ataques.
Apesar do breve intervalo de tempo entre uma ação e outra, os rastros de violência deixam evidências gritantes dos cálculos de suas operações. O grupo intolerante possui marcas fortes de identificação: estavam em bando, eram adolescentes e moradores de uma comunidade próxima. O alvo do ódio foi escolhido metodicamente. Houve repetição dos ataques. As práticas de violação reproduziram os modos de fazer do dia anterior: pedras, socos e pontapés na porta de entrada do Centro Umbandista. A manifestação perversa da intolerância foi organizada.
Segundo a comunidade do Centro Espírita União, Amor e Caridade, aquela era a primeira vez que a casa sofria um ataque de tal monta. Colocando a ocorrência em perspectiva histórica, essa não é a primeira e nem será a última vez que uma comunidade religiosa divergente do cristianismo é alvo da intolerância religiosa. Não faz muito tempo que cristãos e cristãs ensandecidos e ensandecidas bradavam pela retirada da imagem da Sereia e do Nêgo D’Água, símbolos das forças das águas homenageados sob a forma de esculturas nos trechos do Rio São Francisco que separam Juazeiro de Petrolina. O ódio que pulsa no coração dos jovens que atacaram o Centro é velho, ardiloso e atravessa fronteiras históricas invisíveis.
A comunidade umbandista local tem tomado as providências cabíveis quanto aos ataques iniciados no dia 10 de maio e está ciente de que novos episódios podem ocorrer. As provas foram reunidas; os prejuízos estão sendo inventariados; as autoridades policiais foram notificadas; as famílias dos adolescentes estão sendo identificadas e chamadas à responsabilidade; a comunidade local está sendo amplamente informada dos acontecimentos. Ainda há muito o que fazer.
A intolerância organizada que violou as portas do Centro Espírita União, Amor de Caridade está em plena expansão no Brasil. É também a violência contra as escolas, contra as pessoas negras, contra a comunidade LGBTQIA+, contra os povos indígenas e quilombolas, contra a natureza, contra a ciência. É a violência do etarismo, do racismo, do machismo, do escravagismo contemporâneo, do negacionismo, da xenofobia e do capacitismo. A intolerância organizada que temos em vista agrega à violência duas qualidades: juventude e cálculo.
Por Álamo Pimentel
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