Essa síntese da obra de Rita Lee, formulada pelo historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, pode ser uma espécie de ímã que gruda grande parte das formulações que abarcam a artista, morta no dia 8 passado. Na mesma linha, Eduardo Vicente, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, diz: “Ela consegue trazer questões da rebeldia juvenil, questões muito caras à contracultura, para um contexto muito mais amplo. Para um contexto de uma comunicação mais massiva”.
Para entender o que Eduardo Vicente está afirmando é preciso lembrar que, antes de se reunir com a banda Tutti Frutti, e daí para sua carreira solo, alcançando o tal contexto mais amplo, ela fez parte de Os Mutantes.
Muita gente soube da existência do grupo quando assistiu ao 3º Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, em 1967. O apresentador Blota Júnior anunciava Gilberto Gil mencionando sua afirmação, a de que pretendia dar um som universal à música brasileira. Foi motivo de muita controvérsia, aliás. E a controvérsia só fez aumentar depois que os reis da brincadeira e da confusão, José e João, no meio de um parque de diversões, desenrolaram sua história de amizade, amor e violência ao som de guitarra, baixo elétrico, berimbau, orquestra e pratos de bateria.
Vamos pular um pouco a parte da controvérsia artística, que fica para outra conversa. Aqui, lembro os pratos. Pois, atrás daqueles pratos, estava uma moça com coração desenhado no rosto. A mesma que teve sua voz silenciada no último dia 8 de maio.
Ela e seus companheiros de banda pegaram gosto pela provocação, especialmente num contexto de ditadura militar. E carregaram bandeiras ligadas à liberdade nas suas composições e performances musicais. O que Rita Lee fez foi extravasar para além do público mais característico desse cenário. Ir além do jovem intelectualizado, geralmente universitário. “Ela consegue transpor uma barreira e fazer uma música mais massiva e mais popular sem abrir mão de bandeiras e de uma certa qualidade estética dentro desses limites”, explica Eduardo Vicente.
Luiz Tatit, músico e professor no Departamento de Linguística da FFLCH, detalha essas contribuições temáticas e estéticas. Ele lembra que canções lentas, aquelas em que as vogais têm durações maiores, costumam tratar de sofrimento. Mas Rita Lee traz outras temáticas para canções assim. “Em boleros, por exemplo, as músicas lentas estão carregadas de tristeza, de perda, de faltas. Mas com a Rita Lee, não. Com ela, dá tudo certo. Mania de Você, por exemplo, tem todo esse erotismo. E em outras composições lentas dela acontecem coisas boas também. Isso é muito raro: compatibilizar um tema eufórico em músicas de tipo passional, lentas. No caso das músicas lentas dela, não há sofrimento, mas, sim, aproveitamento”, destaca ele.
Quando conversamos para esta reportagem, Tatit lembrou de uma interpretação que sublinha de maneira impressionante essa característica, valorizando a duração das vogais e, ao mesmo tempo, propondo uma temática carregada de erotismo. Vale clicar nessa interpretação, juntando Milton Nascimento e Rita Lee. Sugiro ir ouvindo enquanto continua a leitura.
Aproveitando a presença de Luiz Tatit na reportagem, vamos saber de outro destaque dele sobre o legado de Rita Lee: “Ela introduz as cantoras no universo da composição. Antes dela, houve algumas, como Maysa, Dolores Duran, em se tratando de canções. Mas era muito raro. Por isso, as mulheres eram sempre cantoras. E a Rita Lee foi muito prolífica como compositora, tal como os compositores homens mais prolíficos”.
O historiador Marcos Napolitano vai na mesma linha: “A partir dos anos 1950, tivemos uma presença significativa de intérpretes femininas. Mas, de todo modo, nunca tivemos uma grande profusão de compositoras, até pelo machismo dominante no meio musical e na sociedade como um todo. As composições de Rita Lee trouxeram temas da contracultura, do feminismo e da revolução comportamental e sexual para a cena musical brasileira, e sua importância extrapola os limites do gênero rock”.
Quem passou pelo período autoritário do Brasil testemunha quão libertador era ter representantes daqueles anseios todos, mandando aos ares as vozes da juventude. “Para quem, como eu, viveu esse momento e fez parte dessa geração, o processo de abertura não era só uma questão política. Eram vários aspectos. E uma parte significativa disso se referia a essa maior liberalidade, essa liberdade sexual, essa liberdade de discutir questões de drogas e tudo o mais. Todas as questões comportamentais, de vestuário, tudo isso foi superimportante dentro do cenário. Então, também o desbunde, no pós-tropicalismo, teve um papel”, reflete Vicente.
Segundo Rita Lee, em entrevista à jornalista Patricia Palumbo, presente no livro Vozes do Brasil, foi Ronnie Von quem deu o nome aos Mutantes:
“Fomos fazer uma reunião na casa dela, e o Ronnie disse: ‘Putz, bicho, tem um livro sensacional que quero que vocês leiam. Chama-se O Planeta dos Mutantes’. Os quatro compramos o livro, lemos e vimos aquela ideia do mutante como o ser que encosta na sua mão e vira você. Havia toda uma ideia fantástica ali, e acabamos abandonando Os Bruxos para virar Mutantes”.
Além de dar nome à banda, Ronnie Von também esteve, indiretamente, no meio de uma história de amizade e trabalho artístico muito frutífera. Pois uma das frequentadoras de seu programa televisivo era uma garota adolescente. Ela via apresentações de Os Mutantes e das demais bandas que tocavam lá. E se identificava com a menina da banda que, numa publicação da época, aparecia usando uma roupa dos Beatles, exatamente igual à que ela própria tinha. A garota se chamava – e se chama – Lucia Turnbull. E agora, já uma senhora musicista, em todos os melhores sentidos, conta para a gente como as coisas se seguiram:
“Com 16 anos, alguém tinha me arrumado o endereço dos irmãos Baptista. Escrevi para eles. E tive resposta. Aí, fui assistir a um show deles e me apresentei. Comecei a andar com eles e a minha irmã mais nova também. E o resto tá aí nas publicações.”
E o que é esse “resto”?, nós nos perguntamos. Ela continua: “Quando acabou Os Mutantes, aí veio Cilibrinas e Tutti Frutti”.
Só isso. Apenas isso. Lucinha Turnbull foi a guitarrista e a vocalista que dividiu discos e palco com Rita Lee, primeiro no álbum Cilibrinas do Éden e, depois, na banda Tutti Frutti.
No meio de um dia tão sensível, indo ao velório de sua companheira de música, correndo para o ensaio e voltando ao velório, comendo alguma coisa já tarde da noite, Lucinha Turnbull reúne as palavras que enviará na manhã seguinte. E, nessas palavras, conta um pouco dos bastidores de Rita Lee.
“Eu acho que a Rita sempre teve um atrevimento meio malandro. Ela fazia tudo brincando. Ela falava sério através da brincadeira. Essa era uma característica muito forte dela: o humor. O humor e a introspecção.”
Olha só. Humor e introspecção. E tem mais. Os gostos em comum com a amiga.
“Então, ela sempre gostou de tanta coisa, de música italiana, francesa, de clássica. A gente se encontrava muito nesse lugar da música, do cinema. Ela adorava cinema e eu também. Ela se disfarçava pra ir ao cinema sempre, a gente ia com os amigos.”
Lucinha define essa mescla de expansão e recolhimento de um jeito bem sintético: “Uma pessoa de muito humor, bastante reservada. Como eu também sou, também gosto de ser. E que adorava ficar em casa arrumando a gaveta, quase uma arquivista. Uma pessoa comum e excepcional.”
Mais uma vez tenho que repetir aqui as palavras: comum e excepcional. Precisa de mais?
Só se for mais uma música. Uma que traga o comum de uma mulher, o fenômeno mais comum e excepcional entre os comuns, como a menstruação, que vai parar no universo da canção.
CRIAÇÃO E CRIADORA: O historiador Marcos Napolitano diz que a vida artística de Rita Lee sintetizou um certo ideal de juventude e liberdade existencial. Mas com algo a mais. “Foi uma das compositoras que ajudaram a criar um rock moderno e poeticamente mais adensado, superando, definitivamente, os limites da música mais ingênua voltada para a juventude, herdada do começo dos anos 1960, como a Jovem Guarda.” E acrescenta: “Além disso, ela sempre foi uma das melhores intérpretes de suas canções, pois sua persona moderna, descontraída e bem humorada valorizava as finas ironias de suas letras, e rompia com a performance da ‘mulher-que-sofre-e-canta’, muito comum na tradição das intérpretes românticas”.
Nessa linha, tudo indica que seu jeito de se comportar e se posicionar não pode ser separado das criações musicais. “O grande marco dela é ter trazido a canção como compositora. E ela tinha um modo integral de ser. Não se policiava. Era muito espontânea. Expressava as certezas dela. E passava tudo isso nas canções”, confirma Luiz Tatit.
“Numa sociedade profundamente machista e repressora, a importância do que ela fez, e o fato de ser mulher, é extremamente significativo para o lugar que ela ocupa dentro desse espaço”, complemente Eduardo Vicente.
Quando perguntada sobre as temáticas libertárias de Rita Lee, sua amiga Lucinha Turnbull lembra, por exemplo, da canção Ovelha Negra. Uma menina saindo de casa, na passagem da adolescência para a vida adulta. E tantas outras, mas com uma tônica: “Fazer certas críticas à ordem estabelecida, mas, fundamentalmente, com muita alegria de ser quem ela era e de estar onde ela estava”.
Se alguém que a conheceu bem olhasse para sua trajetória, o que veria? Lucinha tenta: “Acho que ela teve uma vida boa. Com conflitos e desacertos como qualquer pessoa. Só que isso quase que em público. O Lou Reed dizia: ‘crescendo em público’, growing up in public’. Então, todo mundo ouve e vê o que você faz. O que não é muito fácil.”
Aqui, para finalizar, há o impulso de colocar uma música como Cartão Postal. E seria excelente. Mas, pelo menos no final, que seja possível trocar a objetividade da reportagem por um pouco de intuição. E a intuição me diz que Mamãe Natureza seria uma boa.
Jornal da USP-Gustavo Silva
© Copyright RedeGN. 2009 - 2024. Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do autor.