A possibilidade de apresentar a Casa de Sementes nativas à visitantes de diversos lugares e ainda comercializar artesanatos, alimentos agroecológicos e licores produzidos a partir de folhas, frutas, raízes de plantas da Caatinga é algo que o agricultor Geraldo Gomes tem o prazer de contar que vem dando certo na comunidade de Touro, a 20 km da sede do município Serranópolis de Minas, em Minas Gerais.
A experiência de Seu Geraldo faz parte da Rota Turística que hoje conta com investimentos a partir da Política Municipal de Turismo de Base Comunitária e o Programa Municipal de Turismo de Base Comunitária de Serranópolis, instituídos pela Lei nº 522/2021.
A área está situada numa região de Caatinga, dentro do Parque da Serra Geral, no norte de Minas, local que era passagem dos Tropeiros. Quem faz essa rota tem a opção também de degustar sabores regionais, como requeijões, galinha de capoeira e outros alimentos e bebidas e finalizar o passeio com banho de rio na serra, conhecendo espécies da Caatinga no caminho e ainda podendo se divertir com manifestações culturais da região, a exemplo de músicas tocadas por sanfoneiros, algo que já foi bem expressivo na região e hoje vem sendo retomado.
Para Seu Geraldo, esta ação é uma forma de levar para as pessoas a compreensão acerca da importância da Caatinga e promove também resultados econômicos para as famílias. Ele destaca que anos atrás os investimentos governamentais eram voltados exclusivamente para cultivo de algodão, financiando compra de sementes e venenos e o desmatamento das terras. “Com isso perdeu muitas das tradições do povo aqui que eram os plantios consorciados (…), com isso acabou destruindo muitas terras que morreram, porque ficou toda degradada e não foi feito um trabalho de recuperação”, assim como endividou pessoas e poluiu as águas, relata Seu Geraldo, lamentando o impacto disto na biodiversidade local, a exemplo do sumiço de espécies animais e também da flora, além de morte de pessoas por intoxicação.
Além destas constatações empíricas, diversos estudos e pesquisas apontam que o uso desenfreado do solo e do subsolo tem provocado ameaças à vida do único bioma exclusivamente brasileiro. Em 2021, a divulgação do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) foi pauta em meios de comunicação nacionais e internacionais e rendeu inúmeras discussões acerca da possibilidade de 13% do Semiárido tornar-se deserto, uma das consequências das mudanças climáticas. O dado causou espanto, especialmente quando foi propagandeado que a área em estado de desertificação corresponde ao tamanho da Inglaterra.
De lá para cá, só tem crescido o número de empreendimentos agrícolas que retiram a Caatinga para dar lugar a cultivos irrigados, mineradoras, parques de energia solar, eólica, empreendimentos imobiliários, entre outros investimentos da política desenvolvimentista que predomina no país. Ou seja, a tendência é que a área suscetível à desertificação aumente ainda mais nos próximos anos.
Na contramão disto, experiências baseadas nos princípios da Convivência com o Semiárido representam a esperança de reverter a situação. Uma delas é o Recaatingamento, prática que vem sendo trabalhada desde 2009 pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa) no sertão da Bahia. A ação em si não é nova, consiste essencialmente no replantio de espécies dos biomas, o que se chama, convencionalmente, de reflorestamento. Porém, para chamar atenção para as especificidades da Caatinga, a instituição passou a difundir o termo Recaatingamento.
A ação envolve também outros aspectos, como a proteção de áreas a partir do cercamento e a base de todo o trabalho: a educação ambiental. De acordo com o agrônomo Luís Almeida, que atualmente coordena as ações de Recaatingamento na instituição, esse processo pedagógico é um dos maiores resultados constatados ao longo desses 14 anos. Ele cita a mudança no imaginário coletivo, onde as pessoas passam a enxergar os potenciais da Caatinga e assim fortalecem a relação de pertencimento.
Inicialmente a experiência foi desenvolvida em dez áreas com financiamento do Programa Petrobras Ambiental. Com o passar dos anos, novas comunidades aderiram à proposta e o Irpaa realizou convênio com o Governo da Bahia, o que contribuiu para aumentar para 35 áreas, totalizando hoje quase 23 mil hectares em estado de conservação e dois mil hectares em processo de recuperação, conforme informou Luís. Essas áreas estão distribuídas em 14 municípios, uma ação que envolve diretamente 600 famílias.
PARTICIPAÇÃO POPULAR-O grande diferencial do Recaatingamento enquanto proposta de recomposição e/ou preservação da Caatinga é o envolvimento da comunidade. O trabalho de educação ambiental possibilita uma tomada de consciência ou fortalecimento da compreensão acerca das potencialidades do bioma. Há ainda um ganho econômico para as famílias, comunidades e, consequentemente, para os municípios.
Um dos resultados também apontados por Luís Almeida é a retomada da prática de mutirões e a geração de renda a partir de práticas como a apicultura, inclusive observando, junto com as famílias caatingueiras, a necessidade de reintrodução de espécies, a exemplo das abelhas nativas (sem ferrão). “Tem um retorno econômico, mas também uma perspectiva ambiental”, ressalta Luís, que menciona também a retomada da prática de mutirões e a elaboração dos planos de manejo, como ações que contribuem para o sequestro e fixação de carbono e, consequentemente, para o combate aos efeitos das mudanças climáticas.
Luís inclusive destaca que a experiência com o Recaatingamento tem permitido observar de forma mais cautelosa a estratégia de produção do crédito de carbono na Caatinga, algo que vem sendo posto em discussão como uma das saídas para a crise ambiental. Segundo ele, o Irpaa defende que é necessário ainda estudar de forma aprofundada a possibilidade de agricultores/as receberem por serviços ambientais visando a produção deste crédito de carbono. “Isso chega nas comunidades como uma perspectiva, mas a gente coloca isso como uma coisa que a gente precisa amadurecer: será que de fato é esse mesmo o caminho?” questiona, no sentido de entender se não se trata de “uma saída por dentro do mesmo problema que gerou toda a crise ambiental”.
Na opinião dele, com as práticas de Recaatingamento que vêm sendo implementadas, as comunidades já vêm contribuindo com o sequestro de carbono na Caatinga, precisando, portanto, de maiores investimentos neste sentido em vez de remuneração, que pode gerar menos autonomia e mais dependência.
Buscando aliar as boas práticas de convivência com a autonomia financeira, na região do Pólo da Borborema, no Semiárido paraibano, a experiência com os Fundos Rotativos têm permitido milhares de famílias terem uma melhor qualidade de vida ao tempo em que contribuem com uma boa interação com o ecossistema. Os fundos podem ser entendidos como poupanças coletivas, as quais “vêm fortalecendo a agroecologia, o papel das mulheres, o papel dos jovens (…) é uma forma de democratizar o acesso às inovações agroecológicas no território”, avalia a assessora técnica Leda Gertrudes, da da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia.
Ao acompanhar essas experiências, Gertrudes observa que a estratégia de implementação dos Fundos Rotativos está para além da geração de renda, possibilita a segurança alimentar, o empoderamento e autonomia das famílias. Ela destaca ainda que tem contribuído significativamente com a auto estima das mulheres, tirando-as do isolamento e da invisibilidade.
A construção de fogões agroecológicos que evitam uso da lenha retirada da Caatinga, os quintais agroecológicos, áreas de produção de forragens, são algumas das ações financiadas pelas poupanças coletivas, uma vez que são diversas as possibilidades de uso do fundo para aquisição de estruturas ou desenvolvimento de experiências apropriadas ao Semiárido. Leda Gertudres lembra que na região as propriedades, em geral, são pequenas, mas ainda assim tem sido feito investimentos em preservação da Caatinga nestas áreas, a partir de investimentos via Fundo Rotativo.
Hoje, mais de quatro mil pessoas são beneficiadas por esse tipo de financiamento comunitário, desse total mais de 50% são mulheres. Na avaliação da AS-PTA, esta prática tem facilitado a permanência da juventude no campo e constitui-se um como uma caminho importante para o financiamento do desenvolvimento rural nos últimos anos, onde a ausência das políticas públicas impactou a vida no campo. Exemplo disso, foi o financiamento das mini cisternas em 2021, momento em que o então Governo Bolsonaro cortou recursos do Programa Cisternas.
Assim como o Recaatingamento na Bahia e os Fundos Rotativos na Paraíba, a participação popular também é algo fundamental no Semiárido mineiro, que vem desenvolvendo o Turismo de Base Comunitária. “Após a aprovação da lei, iniciamos uma série de reuniões com as famílias, comunidades e população, com palestras, mobilização, além de diversas capacitações. Houve criação de rotas de forma participativa, promoção de eventos com inclusão de momentos para visitas às comunidades e a construção de 10 documentários sobre pessoas e temas potenciais como por exemplo: benzedeiras, sementes crioulas, contador de causo, folia de reis, produção de farinha, entre outros”, informou a prefeitura de Serranópolis de Minas.
O projeto de Lei de Serranópolis de Minas foi inspirado na Lei Estadual (23763/2021) de Turismo de Base Comunitária, de autoria da deputada estadual Leninha (PT/MG). Apesar de não ter sido regulamentada ainda pelo Governo do Estado, a Lei já inspirou outros municípios, como é o caso de Serranópolis de Minas, o primeiro a aprovar esta legislação em nível municipal.
“Acreditamos que essas ações foram (e estão sendo) fundamentais para o sucesso do programa e para garantir o fortalecimento do turismo em Serranópolis de Minas, para que seja uma atividade inclusiva, responsável e de qualidade”, externou a integrante da Associação Umbuzeiro Cidadania e Solidariedade no Semiárido, Helen Borborema.
EXPECTATIVAS-Todas estas ações podem servir de inspiração para o Governo Federal, que, através do Ministério do Meio Ambiente, reconhece que nos últimos anos houve um desmonte das políticas de proteção ambiental e que é preciso retomar estas políticas. O combate à desertificação, por exemplo, é uma das ações que estão na agenda do atual governo, inclusive com a perspectiva de atuação no Plano Nacional, elaborado em 2008, conforme sinalizou o diretor de Combate à Desertificação no Ministério do Meio Ambiente, Alexandre Pires. Além disso, Alexandre adianta que a construção do Plano de Combate ao Desmatamento da Caatinga também será uma realidade, uma ação que se dará também com relação aos demais biomas.
Há também “um apelo da sociedade, um apelo do próprio governo, pra que a gente avance no reconhecimento da Caatinga como um bioma estratégico ou como patrimônio nacional”, destaca Alexandre. Ele lembra que existem Projetos de Lei com esse objetivo tramitando no congresso nacional, mas que ainda não foram aprovados e enquanto isso o Brasil segue “com a Caatinga sendo o segundo bioma mais ameaçado e com isso a gente perde, para além da perspectiva biológica, natural, também toda riqueza sociocultural, todas as formas de relação e modos de vida do povo, então preservar a Caatinga é fundamental”.
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