A reportagem de Mariana Costa e Maíra Mathias na Revista Az Minas Mathias destaca que ao longo dos últimos trinta anos, o avanço da agricultura irrigada e a reorganização do capital em grandes empresas, muitas estrangeiras, provocaram um duplo processo de desterritorialização e proletarização de homens e mulheres do semiárido.
Tudo parece árido e inerte, até os primeiros brotos salpicarem com pontinhos verdes os galhos secos das parreiras. Em três meses, a paisagem já terá mudado: as plantas logo estarão carregadas de folhas e uvas.
As mudas crescem agarradas a uma estrutura de madeira e arames, formando extensos corredores. O ciclo começa com a desbrota. Brotos inférteis se intercalam ao longo dos galhos e devem ser retirados, um a um, com as mãos. Assim, a seiva se concentra naqueles que vão vingar e render frondosos cachos – alguns com até um quilo, dependendo da variedade. Concluída a desbrota vêm o livramento e o raleio. Os cachos devem ser soltos para que não se enrosquem e ganhem espaço para crescer. Folhas que possam eventualmente encostar nas frutas e causar manchas devem ser retiradas.
Tudo é feito manualmente com ajuda de, no máximo, uma tesoura. Cada cacho recebe uma atenção individual, cuidadosa e delicada para que as uvas atinjam seu máximo dulçor e peso. Uma vez terminada a colheita, as parreiras são podadas. Dali a poucos dias, novos brotinhos surgirão. E começa tudo outra vez.
“É assim, nunca acaba”, brinca a aposentada Maria Doloroza dos Santos, de 70 anos. Um sentimento nostálgico se instala enquanto ela caminha entre as parreiras. Foram dez anos de trabalho com as uvas em Maria Tereza, zona rural de Petrolina, em Pernambuco.
Petrolina e Juazeiro, no Vale do São Francisco, são estrelas de um mercado em ascensão: a fruticultura de exportação. É de lá que saem grande parte das uvas e mangas que serão despachadas para supermercados mundo afora e para o Brasil.
A presença de mulheres é forte em culturas como a uva de mesa, que requerem habilidade e delicadeza no trato com as parreiras. Atividades como raleio, desbrota e livramento são feitas quase que exclusivamente por mãos femininas.
Elas também são maioria nos packing houses, setor onde uva, manga, melão, mamão e melancia são embaladas e refrigeradas para atender aos altos padrões dos mercados internacionais.
Fundamental para um setor que vem se consolidando e conquistando espaço cada vez maior no agronegócio exportador, o trabalho feminino na produção de frutas é repleto de contradições entre discurso e prática.
É o que mostramos na série especial “No Rastro das Frutas de Exportação”. Percorremos os dois maiores polos de exportação do Brasil: a região do Vale do São Francisco, entre Pernambuco e Bahia, e cidades do Baixo Jaguaribe e da Chapada do Apodi, entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, de onde saem melões, mamões, melancias e outras frutas enviadas ao exterior.
Donas de casa até então acostumadas com o trabalho doméstico, também eram responsáveis pela lida em pequenas roças de milho, feijão e mandioca, pelo cultivo de hortaliças e pelo manejo de plantas medicinais e de abelhas. Até que viram na fruticultura a oportunidade para entrar no mercado de trabalho e assim proporcionar uma vida melhor para suas famílias.
Ao se tornarem proletárias rurais, terão de lidar com uma total reorganização da vida pessoal, familiar e doméstica.
Maria Doloroza foi uma dessas mulheres. Vivia em Salgueiro, cidade com pouco mais de 60 mil habitantes no sertão pernambucano, a duzentos quilômetros de Petrolina. Sobrevivia lavando roupas para fora, costurando e cozinhando. Foi mãe solo dos cinco filhos. Aos 45 anos, sentiu que algo precisava mudar. “Quando passei em Petrolina, vi tudo verdão. Pensei: oxe, eu vou voltar pra cá, vou voltar pra esse lugar”, lembra. “E foi quando vim e fiquei. Só voltei pra Salgueiro pra vender minha casa.”
Foram dez anos de trabalho como safrista, quando se é contratado temporariamente apenas nos meses de colheita.
A organização do trabalho na fruticultura se divide entre assalariados temporários contratados por safra e aqueles que se tornam permanentes. As safristas ficam empregadas entre três e cinco meses por ano. No tempo restante, perdem a renda e passam a viver com a incerteza da convocação para a próxima safra.
Há ainda os diaristas, que atendem a pequenos e médios produtores que não conseguem atender aos altos padrões de qualidade exigidos para exportação. Mas presença das mulheres é forte em todas essas modalidades de trabalho.
Mesmo com muitas dificuldades, Maria Doloroza conseguiu construir sua própria casa e criar sozinha os cinco filhos – todos trabalham com as frutas desde adolescentes. Uma parreira adorna o portão de acesso da casa onde vive. “É pra lembrar dos tempos da uva”, gaba-se a matriarca da família. Ensinou os filhos, a nora e muitas outras mulheres a lidar com as uvas. Há um sentimento de orgulho e gratidão em seu relato.
A moradia de tijolo aparente, dois quartos, sala e cozinha, fora construída, literalmente, por suas próprias mãos. No quintal que ladeia a residência, pilhas e pilhas meticulosamente organizadas e limpas com materiais recicláveis que ela recolhe e vende para complementar a renda da aposentadoria.
NOVOS MODOS DE VIVER E TRABALHAR-A trajetória da família de Maria Doloroza resume uma nova morfologia do trabalho e dos modos de viver que trouxe profundos impactos na vida das mulheres, inclusive entre aquelas que não atuam diretamente na fruticultura.
Ao longo dos últimos trinta anos, o avanço da agricultura irrigada e a reorganização do capital em grandes empresas, muitas estrangeiras, provocaram um duplo processo de desterritorialização e proletarização de homens e mulheres do semiárido. As origens e a consolidação dessa nova ordem produtiva remontam a uma ordenação territorial e institucional criada pelo Estado brasileiro.
Sem acesso a terra e água, com dificuldades cada vez maiores para se manter na agricultura familiar, essas pessoas ficaram reféns de um setor que cresce com base no emprego de mão de obra mal remunerada e migrante, concentração de terra e água, e exaustão dos recursos naturais.
Essa realidade laboral atinge especialmente as mulheres, considerando a centralidade delas na organização familiar e doméstica em um ambiente rural ainda marcado pelo machismo e por uma divisão bastante desigual das tarefas.
Isso se reflete no esforço e na expectativa para que os filhos estudem e tenham outras oportunidades fora da fruticultura.
Criada em 2014, a Associação Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados (Abrafrutas), entidade que reúne os principais exportadores de frutas brasileiras, vem tendo sucesso em unir e consolidar as demandas do setor. As exportações de frutas no Brasil passaram a apresentar resultados crescentes em volume e faturamento, ano após ano.
Em meio à pandemia e à alta no preço dos alimentos em geral, e das frutas em particular, os exportadores comemoraram dois anos seguidos de resultados recorde em faturamento e volume durante o governo de Jair Bolsonaro. Porém, com o real desvalorizado, produtores tiveram lucratividade maior nas vendas ao mercado externo. Houve também aumento na demanda por frutas durante a crise sanitária.
Não é por acaso que a presença da mão de obra feminina é constantemente enaltecida pelos exportadores de frutas. O destaque é estratégico para um setor que atende mercados cujas sociedades conquistaram maior avanço em termos de igualdade de gênero – notadamente, redes de supermercados da União Europeia, Reino Unido e Estados Unidos, os maiores compradores de frutas brasileiras.
“As mulheres estão nos ajudando bastante e em todos os setores. Desde a engenheira agrônoma, até a mulher que embala como ninguém, com carinho, com dedicação e jeito pra que possa chegar no exterior com qualidade”, afirmou em entrevista, Guilherme Coelho, presidente da Abrafrutas, e proprietário de uma fazenda que exporta uvas no Vale do São Francisco.
Há um esforço em criar a imagem de uma atividade que adota práticas sustentáveis, gera milhões de empregos e proporciona a inclusão de mulheres no mercado de trabalho. “Numa casa geralmente o homem está fazendo esse trabalho, seja no agro ou fora do agro, mas você tem outra oportunidade, outro salário mínimo que é da sua mulher”, acrescentou Coelho.
A reportagem rodou cerca de dois mil quilômetros. Porém, em dezenas de entrevistas realizadas ao longo de duas semanas de viagem, viu uma realidade bastante distinta daquela descrita pelo presidente da Abrafrutas. Os relatos das mulheres que trabalham na fruticultura, incluindo funcionárias de grandes empresas exportadoras, foram de preocupação e dificuldades em arcar com as despesas básicas, como alimentação e roupas para as crianças.
A grande maioria dos agricultores e agricultoras recebe um salário mínimo e nada mais. Muitas dessas famílias não consomem as frutas que produzem e estão vivendo em algum nível de insegurança alimentar.
Essa contradição também se faz evidente na comparação entre as condições de vida e rendimentos das mulheres que produzem e das mulheres que consomem essas frutas. O episódio especial do Prato Cheio “No Rastro das Frutas de Exportação” aborda essa disparidade.
Entramos em contato com a Abrafrutas, mas não houve resposta.
A produção total de uva de mesa no semiárido somou R$ 1,8 bilhão em 2021, segundo o dado mais recente da Produção Agrícola Municipal, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).
A Abrafrutas argumenta que elas são maioria entre os 5 milhões de empregos que o setor alega gerar. Entretanto, enaltecer o trabalho feminino na fruticultura também é estratégico para os crescentes esforços em valorizar a presença das mulheres no agronegócio brasileiro, uma atividade ainda fortemente dominada por homens e atrelada a um certo ideal de masculinidade que hoje vem sendo colocado em xeque.
E é aqui que encontramos mais um aspecto controverso: as iniciativas que promovem mulheres, em geral, miram em proprietárias e gestoras de grandes fazendas. Exemplo disso é o Prêmio Mulheres do Agro, patrocinado pela Bayer, e atualmente em sua quinta edição.
Ainda assim, as mulheres seguem sub representadas mesmo no âmbito patronal e também nas entidades que representam os interesses do setor. Na fruticultura, são os homens que estão à frente das grandes empresas exportadoras. Ter mulheres no comando dessas fazendas poderia, numa perspectiva otimista, trazer um olhar mais sensível para as particularidades do trabalho feminino.
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