Quando o assunto é a tradição que vem da sabedoria popular e da memória coletiva, impossível não encontrarmos pessoas que dizem: “faço isso porque aprendi com meus avós, na minha comunidade…”, ou: “tenho esse costume desde pequeno/a”.
Dessa forma, poderíamos elencar uma série de práticas culturais que remetem, resumidamente, a construções e vivências coletivas e que, até hoje, motivam nossas comunidades na continuidade de diversas tradições. De acordo com estudiosas/os da Antropologia, a ciência que se dedica a diversos assuntos relacionados às origens e características do ser humano, esses elementos que formam o que chamados de cultura são resultados de todo um processo de acúmulo de saberes e práticas ao longo de gerações.
Com influência religiosa, através do cristianismo católico, a chamada Semana Santa, que tem dias dedicados à rememoração e celebração dos últimos passos de Jesus Cristo até a crucificação, muitas pessoas seguem tradições que são um símbolo desse “espírito comunitário”, que perpassa gerações, em diversos cantos do Semiárido. São costumes de, por exemplo, na sexta-feira da Paixão (dia da celebração da “morte” de Jesus) pedir a bênção do pai, da mãe e demais parentes de joelhos; de ir ao cemitério rezar pelos/as falecidos/as e fazer penitências; concluir vias-sacras, trocar alimentos entre as famílias; fazer doações (as chamadas esmolas); alimentar os peixes, entre outros.
Muitos desses exemplos de tradições acontecem aqui no Território de Identidade Sertão do São Francisco (TSSF). Em Andorinha, comunidade tradicional ribeirinha do município Sento Sé, a moradora Flor Leobino nos conta detalhes das práticas de trocas e pedidos de alimentos. “Na sexta-feira da Paixão, a gente partilha o pão, as crianças, jovens, adultos saem pedindo esmola. Aí, quando chega na porta, da gente diz: ‘uma esmolinha, pelo amor de Deus!’. A gente dá o que tem; é abóbora, a farinha, o feijão de corda [...] Quando a gente dá, a pessoa diz: ‘Deus lhe pague sua esmola no Reino da Glória!’”.
Dona Flor ressalta que também existem os dizeres tradicionais para quando a família, por algum motivo, não tem como doar a quem pede. Nesse caso, a pessoa diz: “Deus lhe favoreça!". A resposta, em complemento às palavras citadas, é sempre um Amém. “[...] É a tradição da gente, a gente aprendeu com os pais, os pais da gente já aprendeu com os avós, e assim vai!”, destaca.
Em Andorinha tem outras tradições, como, ainda na sexta da Paixão, fazer um mutirão comunitário para a limpeza do cemitério. Na ocasião, eles/as também reformam ou aumentam as covas. “[...] Vai para acender as velas nos túmulos, no cruzeiro. Os homens vão capinando os matos e as mulheres no carrinho, carregando, fazendo o mutirão e deixa o cemitério todo limpo [...] E algumas comunidades (vizinhas) tem uma ou duas famílias que vai dar comida pros peixes”, complementa Flor Leobino.
Esse costume existente em comunidades ribeirinhas de alimentar peixes também é uma tradição em Pilão Arcado. Entre as explicações para a prática está a crença de que é uma forma de agradecer pela fartura da ceia naquele dia. O peixe é muito simbólico no cristianismo, que representa a vida.
Eliane Santana, da comunidade tradicional de Fundo de Pasto Brejo do Zacarias, nos conta que lá também existe essa cultura de alimentar os peixes dos lagos, uma “tradição antiga, que vai passando de geração em geração [...] Outra tradição muito forte é de toda sexta-feira santa, bem cedo, irmos dar a bênção aos mais velhos da comunidade. É uma forma de fortalecer as crenças dos nossos antepassados”, afirma.
Em relação às orações pelo perdão dos pecados e pelas almas, existem práticas culturais de rezar por essa intenção e também, para isso, cumprir penitências. Há uma diversidade de características nos chamados cordões de penitentes, o que varia de acordo com o lugar e a intenção do grupo. Muito do que se tem em comum é o costume de se dirigir a cruzeiros e cemitérios, entoando cânticos e súplicas pelo perdão dos/as falecidos/as e em agradecimento por alcançar pedidos.
Na comunidade Santa Terezinha, região do Salitre, em Juazeiro, existe a tradição dos penitentes. Quando começou na prática, José Lair Ferreira tinha 15 anos, desde então ele nunca deixou de vivenciar e ainda deu seguimento na condução do grupo. “Hoje eu tenho 51 (anos), eu não me afastei por nenhuma situação. Não tenho mais nenhum dos guias que participaram naquela época, a gente continuou o trabalho, hoje eu não sou mais penitente, sou guia (dirige o grupo)”.
Seu José Lair reforça que a prática acontece para além das orações por falecidos/as e que não é só na quaresma. “A gente faz o ano todo a penitência, pagando algumas promessas que alguém faz, visitando o túmulo de alguém que foi penitente. E, é uma alegria só pra família, a gente trabalha não só na quaresma [...] A gente não é só os mortos (a reza, intenções). Na verdade, a gente leva outros sacrifícios também, para pessoas que prometeram por alguém e a penitência deixa a gente certo de que tá certo”.
Sobre essa convicção nos resultados proporcionados pela crença, Lair enfatiza que há relatos de pedidos que foram alcançados. “Existem pessoas aqui que prometem sete anos para pagar, porque já viu resultado de prometer pro nosso padroeiro, que é São Vicente. E, crianças, outras pessoas, adultos com problemas de saúde. Pessoas que estavam no hospital esperando cirurgia e, de repente, alguém fez essa promessa pro cara sair. [...] é parceiro meu, a gente trabalha na penitência e ele não deixa penitência por nada, porque ele foi valido (atendido). Até hoje ele não fez essa cirurgia e simplesmente ele foi curado”.
O exemplo mencionado, das graças alcançadas, de acordo com José Lair é uma grande motivação. Ele completa ainda sobre o sentimento que permeia a sexta-feira da Paixão. “Então, é isso que deixa a gente certo do que tá certo, e só sabe o que bom a penitência, quem faz. Quando a gente chega na sexta-feira santa, sabendo que vai encerrar o trabalho da quaresma, o cara chora sem perceber. As lágrimas ninguém segura. É muito bonito e bom fazer a penitência”, enfatiza.
Dentre muitas outras tradições, poderíamos citar ainda o costume de guardar a sexta-feira da Paixão para estar em família, participar da ceia com os parentes, uma prática que se prolonga até a celebração do domingo de Páscoa. É muito comum encontrar pessoas que viajam para suas comunidades de origem, na intenção de garantir essa vivência familiar, estar junto “dos seus”, como dizem nas comunidades.
Tradições como essas fortalecem os vínculos e as relações entre as pessoas das comunidades, revigoram e despertam a identificação com o pertencimento ao lugar. Em tempos de tantas ameaças aos territórios tradicionais, causadas por grandes empreendimentos, e de dados que revelam o aumento da degradação da Caatinga, manter laços comunitários firmes dão ânimo e esperança para um caminho de potencialização da valorização do bioma, com toda a sua diversidade cultural, de fauna e flora.
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