Historicamente, toda crise termina em uma bifurcação: desenvolvimento ou abismo. Tristemente, mais uma vez o Brasil, ao final de novo período de turbulência, não faz a opção pelo desenvolvimento socioeconômico e humano. Difícil, portanto, ter alguma perspectiva otimista de futuro.
Os sinais não são nada animadores. O governo que acaba de assumir, eleito com o apoio de 16 partidos políticos, de intelectuais, da classe artística e de banqueiros – além de contar com a boa vontade da grande mídia tradicional -, antes mesmo de ser empossado se posicionou sobre temas relevantes de forma a gerar muita preocupação na classe empresarial, principalmente.
As reações são sintomáticas: muitos dos economistas notáveis já se pronunciaram pelo distanciamento do novo governo, alguns até declarando arrependimento pelas manifestações anteriores de apoio.
Há razões para tamanha preocupação. A começar pelo aumento do número de Ministérios, dos atuais 23 para 37 pastas, número muito superior ao de países desenvolvidos como Alemanha (15), Estados Unidos (15), Itália (18), Reino Unido (22) e Rússia (17), com todos os custos que isso irá representar.
Outro motivo foi a PEC da Transição, pela qual o novo governo propôs ao Congresso autorização para gastar R$ 180 bilhões por ano acima do teto legal, por quatro anos. A justificativa foi a necessidade de garantir recursos para o pagamento do Bolsa Família, mas o Parlamento achou exagerado e modificou o projeto original, aprovando o estouro do teto por um ano apenas e no total de R$ 145 bilhões, considerando ser tempo suficiente para o governo que assume em janeiro fazer os ajustes necessários no primeiro ano do exercício a fim de assegurar recursos orçamentários dentro do limite legal para 2024.
Outra medida polêmica foram as alterações na Lei das Estatais, aprovadas em votação relâmpago, de modo a permitir o aumento de 0,5% para até 2% da receita bruta operacional como limite de despesas com publicidade para empresas públicas e sociedades de economia mista, em cada exercício. Também foi reduzida drasticamente (de 3 anos para apenas 30 dias) a quarentena entre a desvinculação da estrutura de partido político ou de trabalho vinculado à organização, estruturação e realização de campanha eleitoral e a posse do indicado para cargo de diretoria ou de conselho de administração de empresa pública e sociedades de economia mista da União, Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Essa alteração – carta marcada para beneficiar histórico integrante do partido do presidente eleito – abriu uma brecha legal de efeito muito mais abrangente, mesmo porque a mudança também abrangeu a quarentena para cargos de agências reguladoras. As alterações facilitarão nomeações políticas em 587 cargos de alto escalão (272 diretorias e 315 vagas em Conselhos), com remunerações e benefícios que consumirão até R$ 3 bilhões por ano.
Além disso, o governo já prepara um novo substitutivo para a Lei, a fim de flexibilizar o acesso a cargos nos conselhos administrativos das estatais. Se aprovado, o governo garantirá mais espaço para seus aliados no comando das empresas, uma vez que 317 postos serão disponibilizados.
Tudo isso caminha na contramão de tudo o que se esperava: a moralização das estatais, que detêm os cargos com maior remuneração e que num passado muito recente foram palco de um enorme esquema de corrupção, responsável por condenações judiciais – depois revistas – de vários políticos que agora retornam ao poder. O mais dramático é que a farra será estendida aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, num efeito cascata significativamente oneroso aos cofres públicos.
Temos, portanto, um sinal preocupante: a instituição de mais privilégios, com mais despesas, em vez do corte de gastos, em decisão totalmente dissociada da realidade das receitas. Uma afronta aos princípios básicos de administração.
Por outro lado, ainda não se ouviu do presidente eleito e de sua equipe de ministros nenhuma menção às propostas de redução de despesas, ao corte de privilégios ou a um plano de metas, essenciais à retomada do desenvolvimento do país, ansioso por um futuro melhor para seus 215 milhões de habitantes.
Nesta nação de decisões estranhas, um ministro da Suprema Corte decidiu às 23h37 de um domingo, logo após o encerramento da Copa do Mundo no Catar, de forma monocrática, que a manutenção do programa de transferência de renda (atual Auxílio Brasil) poderá se dar por meio de abertura de crédito extraordinário, o que deixa essas despesas fora do limite de gastos. Tal decisão se deu no julgamento de pedido apresentado por um partido político e, com ela, a discussão sobre a questão deslocou-se do Congresso Nacional, onde vinha sendo debatida possível alteração legislativa, para ter desfecho no Judiciário.
De volta aos números, o cenário atual remete à previsão de aumento do déficit público nominal – dos atuais R$ 800 ou R$ 850 bilhões para R$ 1,00 ou R$ 1,05 trilhão, valor superior a 9,5% a 10% do PIB Nacional. Não é pouca coisa. Além disso, o pagamento de juros aos bancos deverá superar R$ 900 bilhões ao ano, ou seja, montante superior a toda a arrecadação federal de quatro meses. E, o que é pior, os juros serão sempre crescentes, retardando a necessária desaceleração da taxa Selic. Significa dizer que os investidores e o mercado – que já mostraram certa desconfiança em relação ao futuro ministro da Economia - acompanharão ainda mais de perto todos os passos do novo governo.
Há motivos reais para preocupação. Afinal nenhuma medida foi anunciada em relação ao efetivo combate à corrupção, problema crônico apontado no ranking da ONU, no qual desde 2016 o Brasil aparece estagnado na 79ª posição entre os 176 país mais corruptos do mundo. Tampouco se fala em enfrentar, com urgência, o excesso de gastos com o funcionalismo público para desinchar a máquina administrativa e remunerar adequadamente os profissionais das áreas de educação, saúde e segurança pública.
Do mesmo modo, ainda não foi cogitado concretamente nenhum projeto de lei para reduzir as renúncias fiscais e os gastos tributários, que precisam cair dos atuais 5% para 1,5% do PIB a fim de se garantir mais recursos para investimentos em áreas essenciais para a população. Não se viu, igualmente, nenhuma preocupação em se apresentar um plano de metas, questão aliás, ausente dos programas de governo e dos debates eleitorais.
Não podemos nos eternizar como o país das oportunidades perdidas. Ao chegar à bifurcação, é preciso optar pelo caminho do desenvolvimento. O humorista Millôr Fernandes (1923-2012) dizia, jocosamente, que "o Brasil tem um enorme passado pela frente". Temos agora uma nova oportunidade de fazer a piada perder a graça. É bom não desperdiçá-la.
Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros "Brasil, um país à deriva" e "Caminhos para um país sem rumo". Site: https://samuelhanan.com.br
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