Logo nos primeiros dias de funcionamento do Parlamento em sua atual composição, uma notícia um tanto inusitada à luz do nosso cenário legislativo tradicional passou quase despercebida, distante das manchetes ou dos debates nas principais emissoras.
Ainda é cedo para avaliar os efeitos práticos de uma medida singular no universo bem homogêneo de lamaçal, mas o simples fato já carrega consigo toda uma simbologia nada desprezível.
A iniciativa, por parte do agora senador Sérgio Moro, de um decreto legislativo para impedir a instituição de um dos artefatos mais perniciosos concebidos neste primeiro ano da nova era lulista merece um olhar aprofundado. A começar pelo tipo peculiar de norma proposta, prevista na Constituição como mecanismo para a abordagem de temas de atribuição exclusiva do Congresso, e tipicamente empregada no exercício da função fiscalizadora dos legisladores. Talvez não à toa deparemos com uma quantidade insignificante de PDLs, se comparada à enxurrada de projetos de leis, que, no país dos mensalões e dos "orçamentos secretos", se tornam, muitas vezes, instrumentos de barganhas espúrias entre o Planalto e o Parlamento.
Como ferramenta para a implementação do sistema democrático de freios e contrapesos, onde cabe a um poder controlar o outro, o decreto legislativo é discutido e votado em ambas as casas legislativas e, se aprovado, é promulgado pelo presidente do Senado, dispensando a etapa de sanção ou veto pelo Executivo. Saliente-se ainda que, segundo previsão constitucional expressa, tal iniciativa é cabível para "sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa".
Com base nas premissas acima, Moro propôs um PDL destinado a extinguir a dita Procuradoria de Defesa da Democracia, criada pelo Decreto 11.328/23 para funcionar como autêntico "ministério da verdade". Segundo a exposição de motivos do ex-juiz, à qual me alinho na íntegra, a criação de um órgão para o suposto enfrentamento à desinformação implicará a restrição ao direito fundamental à livre manifestação, sem a existência de uma lei sequer, discutida com a sociedade e aprovada pelo Congresso, que defina o aludido conceito. Reproduzindo as palavras de Moro, "o presidente da República extrapolou do seu poder regulamentar ao dispor sobre tema de grande complexidade, como fake news, por meio do referido Decreto."
Não faltarão advogados do Diabo encarregados de sustentar que a instituição de uma procuradoria no seio da AGU, órgão vinculado à presidência da República com status de ministério, pertenceria ao âmbito de competência exclusiva do governante empossado, sendo, via de consequência, compreendida no âmbito de discricionariedade deste. Porém, como até as artimanhas retóricas mais falaciosas sempre apresentam um flanco a descoberto, eu replicaria, desde já, que a esfera das atribuições presidenciais, por mais ampla, tem de ser restrita ao princípio da legalidade, imperativo constitucional para a prática de quaisquer atos da administração pública.
E, em toda essa controvérsia, onde fica o Judiciário, foco maior dos debates neste espaço? Após acompanhar, de perto, a atuação recente da nossa cúpula togada, ouso concluir que dela tenham se originado as fúrias censoras pioneiras, que encontraram, no Executivo ocupado pelo recém-eleito, terreno fértil para a reprodução de cópias servis, à sua imagem e semelhança. Afinal, se tivermos em mente a Resolução do TSE, aprovada ainda durante o período eleitoral e comentada aqui, conferindo plenos poderes aos togados superiores para, de ofício, suspenderem perfis tidos como "disseminadores de desinformação", e a compararmos ao decreto ora combatido por Moro, enxergaremos uma clara relação de matriz e filial, de criador e criatura.
Corroborando essa hipótese, basta pensar que, durante os dois mandatos do atual ocupante do Planalto e até no abreviado reinado de sua sucessora, nenhum dos nomes hoje vistos no topo da pirâmide como figurinhas repetidas dos anos 2002, e cuja essência vil em nada mudou, jamais conseguiu impor a censura e a intimidação que têm se espraiado entre nós. Certamente, vontade não lhes faltou, no passado, de calar jornalistas, procuradores e até magistrados que ousassem escancarar as roubalheiras e a ingerência agudizadas naquele período. No entanto, vivíamos um outro momento histórico em que, por uma série de fatores que não temos sequer pretensão de investigar, os arreganhos autoritários seriam enxergados como tais por parcela majoritária da população, a um elevadíssimo custo político para o lulopetismo.
Passados os anos, desgastada a percepção social acerca de operações anticorrupção como a Lava-Jato, muito reabilitada aquela referente ao partido ora hegemônico – em boa medida, como reação ao histrionismo bolsonarista -, e surgidos magistrados de cúpula que souberam valorizar sua imagem como supostos freios à grosseria do governante anterior, arroubos repressivos protagonizados pelos tribunais superiores começaram a ser enxergados com simpatia, como medidas indispensáveis à contenção do autoritarismo e à preservação da democracia. Quanta ironia, que talvez faça arregalarem os olhos dos jovens daqui a algumas gerações.
Em conto lapidar, Machado de Assis descreve o momento em que o Demônio, cansado de ser o velho antagonista de Deus, mero figurante na sagrada história, teria fundado sua própria religião, com sua missa e todo o aparato eclesiástico. Comunicada a decisão ao Criador, o tinhoso se apressou em trazer sua boa nova aos seguidores, prometendo-lhes todas as delícias terrenas, em uma nova ordem onde as virtudes se tornariam pecados, e vice-versa. Com sua retórica incomparável, não tardou a arrebanhar hordas, ávidas por uma existência de prazeres irrestritos, sem respeito ou solidariedade ao próximo.
Contudo, longos anos depois, o Diabo percebeu que muitos de seus mais aguerridos fiéis voltaram a praticar as antigas virtudes, ainda que às escondidas. Para seu maior assombro, viu glutões tornarem ao regime alimentar regrado, avaros fazerem caridade, e até mesmo um falsificador contumaz, desses criminosos por excelência, deixar de fraudar para distribuir esmolas aos criados. Decepcionado, voou aos céus para perquirir a causa secreta de fenômenos tão singulares, ao que ouviu a resposta de Deus: "que queres tu, meu pobre Diabo? (...) É a eterna contradição humana."
Quando banalizada e normalizada, até a prática irrestrita das piores vilanias exaure e nos afunda a todos em profundo tédio, que, ao longo do tempo, nos lança ao abismo de uma existência sem sentido. Quando a corrupção, de tão endêmica, deixa de ser segredo para ser praticamente oficializada, a sede por espoliar se torna insaciável, como qualquer outro vício, e passa a suscitar uma sensação de desgosto e de repulsa ao redor. Da mesma forma, quando a censura se torna quase generalizada, nós, humanos, por mais complacentes que sejamos com o establishment, sufocamos e perdemos a capacidade de calar o grito preso na garganta.
Efeitos deletérios do tempo, até para a autodestruição do culto ironizado pelo Bruxo. Resta saber quanto tempo. E, nesse ínterim, haja paciência!
Kátia Magalhães, colunista do Instituto Liberal e advogada
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