O analista ambiental Flúvio Mascarenhas, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), pode ser definido como uma das melhores personificações do que foi a vida dos servidores ambientais durante os quatro anos do governo Jair Bolsonaro (PL).
Há 13 anos exercendo a função no Acre, Flúvio foi perseguido pelos superiores, demitido duas vezes da chefia da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes – uma delas diretamente por Ricardo Salles – e também ameaçado de morte por infratores ambientais insatisfeitos com o seu trabalho, numa das unidades de conservação da Amazônia mais desmatada no período 2019-2022: 305 km2, segundo o INPE.
Ele e os colegas sofreram perseguições e assédios morais por parte de seus chefes, muitos deles policiais militares indicados pelo ex-ministro do Meio Ambiente. “A missão deles lá dentro, não falo de todos, era perseguir, desmobilizar e desaparelhar. Essa era a missão que eles tinham. Era ligar para o servidor para passar recado”, diz Flúvio.
Ele viu colegas serem demitidos pelas questões mais simples possíveis, no exercício legal de suas funções, e que retornaram aos cargos graças a sentenças judiciais. Muitos deles, afirma, ficaram traumatizados, enfrentaram perrengues, ficaram desmotivados e doentes, necessitando de ajuda psicológica. “Eu costumo dizer que a gente não queria estar no paraíso, mas só sair do inferno mesmo. A sensação de normalidade dentro do serviço após as eleições já te deu até um ganho de qualidade de vida.”
Formado em engenharia florestal pela Universidade Federal do Acre (Ufac) e mestrado em Gestão de Áreas Protegidas da Amazônia, pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Flúvio conhece como poucos a realidade da Resex Chico Mendes. Demarcou a reserva com seus quase um milhão de hectares de ponta a ponta. Foi o chefe da UC por duas ocasiões: entre novembro de 2018 a julho de 2019, e abril a julho do ano passado. Em todos os casos, demitido por pressões políticas.
Após quatro anos de anonimato e falando sempre em off com jornalistas, enfim Flúvio se sente à vontade e seguro para mostrar a cara e conversar com ((o))eco, em Rio Branco. Ele faz uma análise do que foi ser um servidor ambiental no Brasil durante o governo Bolsonaro, e o que espera, agora, com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência da República.
Governo novo Brasil, Marina Silva, a criadora do ICMBio, de volta ao Ministério do Meio Ambiente. O que esperar daqui pra frente?
O primeiro fato é que a gente voltou a ter esperança, fé de dias melhores. Eu acho que voltou um Lula diferente dos dois mandatos anteriores. Não fosse isso a gente estaria numa situação bem pior. A vitória dele trouxe a esperança de volta de dias melhores, uma sensação de alívio. Talvez ele nem saiba o tamanho do alívio que ele colocou no coração das pessoas, de saber que podem trabalhar em um ambiente melhor, num ambiente sem perseguição. A gente sente que tem como reverter esse negócio. Como servidor, sabemos que conseguimos reflorestar as áreas devastadas, temos projetos assim em andamento. Nós estamos com um projeto de regeneração florestal com apoio do Banco Mundial. Sabemos que o Fundo Amazônia voltou para apoiar os estados e o governo federal. A gente tem uma ministra incumbida, que conhece no cerne, na carne, conhece bem os negócios, é experiente. Acho que dessa vez ficou claro que os servidores seriam ouvidos. Outras vezes não foram tanto como deveria. É até uma correção de rumos de questões anteriores. Os servidores precisam ser ouvidos. Outra coisa que ficou evidente durante esses anos de resistência é que provamos que sabemos gerir de fato, que nós não precisamos de pessoas de fora para fazer gestão de unidade de conservação. Não precisamos de apaniguados, de gente extra-quadro. Nós precisamos de apoio na causa para fazer o negócio andar. A gente sabe como fazer, temos experiência suficiente no Ibama, na Funai, no ICMBio. A gente trabalhou com recursos totalmente escassos, e mesmo assim nós conseguimos segurar. Era para estar bem pior, mas a resistência também foi muito grande.
O primeiro fato é que a gente voltou a ter esperança, fé de dias melhores. Eu acho que voltou um Lula diferente dos dois mandatos anteriores. Não fosse isso a gente estaria numa situação bem pior. A vitória dele trouxe a esperança de volta de dias melhores, uma sensação de alívio. Talvez ele nem saiba o tamanho do alívio que ele colocou no coração das pessoas, de saber que podem trabalhar em um ambiente melhor, num ambiente sem perseguição. A gente sente que tem como reverter esse negócio. Como servidor, sabemos que conseguimos reflorestar as áreas devastadas, temos projetos assim em andamento. Nós estamos com um projeto de regeneração florestal com apoio do Banco Mundial. Sabemos que o Fundo Amazônia voltou para apoiar os estados e o governo federal. A gente tem uma ministra incumbida, que conhece no cerne, na carne, conhece bem os negócios, é experiente. Acho que dessa vez ficou claro que os servidores seriam ouvidos. Outras vezes não foram tanto como deveria. É até uma correção de rumos de questões anteriores. Os servidores precisam ser ouvidos. Outra coisa que ficou evidente durante esses anos de resistência é que provamos que sabemos gerir de fato, que nós não precisamos de pessoas de fora para fazer gestão de unidade de conservação. Não precisamos de apaniguados, de gente extra-quadro. Nós precisamos de apoio na causa para fazer o negócio andar. A gente sabe como fazer, temos experiência suficiente no Ibama, na Funai, no ICMBio. A gente trabalhou com recursos totalmente escassos, e mesmo assim nós conseguimos segurar. Era para estar bem pior, mas a resistência também foi muito grande.
((o))eco: O que foram, ou o que representaram, estes últimos quatro anos de governo Jair Bolsonaro para os servidores ambientais do Brasil?
Flúvio Mascarenhas: Representaram um pesadelo que se acabou no dia 30 de outubro de 2022, com a eleição do presidente Lula, ganhando as eleições declarando apoio a todos os servidores que realmente lutaram e que foram de resistência no combate aos ilícitos ambientais; não fomos poucos. A gente tinha uma noção que os quatro anos de governo Bolsonaro iam ser um inferno, iam ser um deus-nos-acuda, e de fato foram. Perseguição com achincalhamento, personalização e perseguição de servidores. Os servidores eram tolhidos de falar. Então, os servidores ambientais foram os que mais sofreram porque estavam na linha de frente no combate ao desmatamento, ao garimpo ilegal. Não podia destruir equipamento, não podia fazer notificação de saída para os invasores de terras públicas. Foi uma série de sofrimentos que esses funcionários passaram. Teve muita gente que adoeceu, muita gente que passou por perrengues. Teve muita gente que foi demitida e que voltou graças à Justiça, mas ficaram traumatizadas. Teve muito assédio. Foram quatro anos de lutas, mas houve muita entrega também. Muita entrega por parte dos servidores que têm a causa ambiental, que reconhecem as populações tradicionais lá dentro [das unidades de conservação], e colocaram isso na linha de frente. Nessa época, as pessoas mais humildes dentro das reservas extrativistas não tinham voz, elas ficaram invisíveis. Elas não existiam para essas pessoas que ficaram no poder durante esses quatro anos. Eu costumo dizer que a gente não queria estar no paraíso, mas só sair do inferno mesmo. A sensação de normalidade dentro do serviço após as eleições já te deu até um ganho de qualidade de vida.
Como era para vocês que iam a campo para as operações, e de repente recebiam ordens para sair da área, que não era para ter operação ali por pressões políticas, ou chegavam de volta às repartições e tinham as notificações, autos de infrações anulados pelos chefes?
A sensação era de total impotência, a pior das sensações é essa. Essa sensação de impotência é que se você fizer algo contra aquilo, você será pressionado por um processo administrativo disciplinar. Então era se evitar ao máximo possíveis erros, era fazer com uma cautela mais do que triplicada naquele momento. Era tentar fazer os registros possíveis. Alguns servidores fizeram mais do que um minucioso processo investigativo, até para que isso tivesse validade no futuro para a gente conseguir fazer uma retomada de área invadida. Mas todos esses tolhimentos deu no que deu. A gente vê o grande exemplo aí no que aconteceu na Terra Indígena Yanomami, com a falta de servidores e o tolhimento de todos os órgãos ambientais, e também incluo a Funai, cujos servidores passaram pelo mesmo inferno que nós. A consequência de você cercear os servidores ambientais foi um grande prejuízo para a nação, para a economia, para tudo. Fora que a gente era visto como um país pária, como um país repugnante, que não sabe tratar nem direito seus povos, assim como não sabe tratar direito seu meio ambiente.
Quais foram as consequências do desmonte da política ambiental para as unidades de conservação da Amazônia?
Reunião dos defensores da redução da Resex Chico Mendes com o então ministro Ricardo Salles, em 2019. Foto: Divulgação.
Algumas, bem protegidas mesmo, não sofreram com esse tipo de revés. Essa proteção se dá por questões geográficas, de serem inacessíveis. A inacessibilidade salvou essas unidades de conservação, mas aquelas que as protegem, que fazem o isolamento geográfico dessas outras áreas protegidas, não. Elas sofreram pressões enormes. Um exemplo bem claro disso é a [Reserva Extrativista] Chico Mendes. Ela está aqui bem na ponta do arco do desmatamento, do arco do fogo, e cujos resultados são oito mil hectares de floresta jogados no chão. Isso era programado, era financiado. Assim como a gente vê que o garimpo ilegal é financiado, tem um grande poder econômico por trás, o desmatamento também é. Se a gente for pegar a localização da reserva extrativista, ela está localizada na zona de agricultura do estado do Acre. Ela é de interesse do setor econômico, do agronegócio, mas que não tem nenhuma preocupação com as 20 mil pessoas que moram ali dentro. A Chico Mendes não existe só por uma questão ambiental, ecológica. Ela garante a segurança jurídica e fundiária das famílias que estão dentro de um território protegido em todos os sentidos. Embora alguns não vejam isso, mas elas têm a garantia da seguridade social, da energia chegar ali. Eles têm tudo de forma pequena, mas têm. Se o PL 6024 [De autoria da deputada Mara Rocha (PSDB/AC), que reduz a reserva] fosse aprovado, com a retirada de pedaços de terra da reserva, a gente teria uma catástrofe social no estado do Acre, semelhante ao que tivemos lá na década de 70, o que originou a resistência de seringueiros como Chico Mendes. Mas a gente tem algumas felicidades. A unidade resistiu a todos esses ataques. Eu imaginava que o estrago fosse ser muito maior. E aqueles extrativistas de origem foram os responsáveis por manter esses 90% da reserva em pé, foram eles, porque o órgão mesmo [ICMBio] estava desmobilizado, desaparelhado.
Por duas vezes, nestes últimos 4 anos, você ocupou a chefia da Resex Chico Mendes, e nas duas foi demitido por sua cabeça ter sido pedida por aqueles moradores que deixaram de ser extrativistas e passaram a ser pecuaristas. Uma de suas demissões foi pedida diretamente ao Ricardo Salles. Como foi isso?
A primeira demissão eu sei que foi diretamente pelo Ricardo Salles quando ele esteve aqui no Acre, lá em julho de 2019. Eu era visto como esquerdista, o comunista. Nosso trabalho de fiscalização incomodava muita gente. A última eu sei que também foi porque meu trabalho já não agradava a esse público bolsonarista, e foram pedir minha demissão aos deputados daqui com acesso à chefia do ICMBio. Eu estava trabalhando nessa última chefia para que as coisas funcionassem, para que garantíssimos o território para as populações tradicionais, para que elas fossem realmente atendidas, levar a dignidade humana para cada um delas. Chegassem ao escritório [do ICMBio] e fossem pelo menos ouvidas. Mas foi uma barra que eu peguei, porque o mundo estava caindo sobre nós naqueles três meses antes das eleições. As pressões políticas sobre a Chico Mendes são muito grandes. Há muitos interesses envolvidos.
O que foi para vocês o processo de militarização do ICMBio?
Foi a coisa mais terrível do mundo. Só faltou a gente prestar continência. Foi vergonhoso não pelos profissionais da segurança pública, porque eles exercem papel fundamental tanto para o país como para a sociedade, e exercem, inclusive, na área ambiental. Mas na área de direcionamento não têm conhecimento, conhecimento científico, conhecimento de gestão de unidades de conservação que são uma problemática bem diferente do que eles convivem no dia a dia. A missão destes profissionais da segurança lá dentro, não falo de todos, era perseguir, desmobilizar e desaparelhar. Essa era a missão que eles tinham. Era ligar para o servidor para passar recado. O próprio presidente, aquele Homero [coronel Homero Cerqueira] ligava para os servidores. Eu mesmo recebi telefonema dele fazendo assédio moral. Outra questão era que eles só atendiam aos pedidos dos políticos, deputados, que tinham livre acesso ao ICMBio. A gente tinha aqui a deputada Mara Rocha [não reeleita] que praticamente mandava no ICMBio do Acre.
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