Só experimentamos a felicidade plena na infância. Na vida adulta, ela surge em ondas, em geral contidas pelas contradições mesquinhas do cotidiano.
Felicidade é pássaro irrequieto concebido para a liberdade. Mal pousa em nosso espírito, já bate as asas. Contra todas as evidências, no entanto, vivemos na ilusão de um dia aprisioná-lo.
Felicidade plena, mesmo, só no conforto protegido do ventre materno. Lá, a sobrevivência está à mercê exclusiva da fisiologia, não há encruzilhadas, armadilhas nem espaço para dúvidas que nos levem à angústia das escolhas.
A plenitude chega ao fim em nove meses. Os religiosos que me perdoem, mas o paraíso com serpentes e frutos proibidos do qual Adão e Eva foram expulsos por graça do pecado original, é mundo inóspito se comparado aos ditames da vida intrauterina.
Para destruir a convivência idílica com o organismo materno, são necessárias contrações uterinas tão brutais, que chegamos à luz aos berros, prenúncio do que está por vir.
Na infância, a felicidade faz visitas mais demoradas. É a única fase em que conseguimos acordar, passar o dia inteiro e ir para a cama felizes, por dias consecutivos. A primeira da qual tenho lembrança, aconteceu aos 7 anos.
Nasci num bairro cinzento em que o apito das fábricas marcava a rotina das famílias. Para avistar uma árvore, era preciso andar até o largo na frente da Igreja de Santo Antônio, a vários quarteirões de distância.
Naquelas férias de janeiro, meus tios levaram meu irmão e eu para uma fazenda a muitas horas de São Paulo, na companhia de seis primos com idades próximas às nossas. Pela primeira vez montei num cavalo, nadei em riacho, senti nos ombros o impacto de uma cachoeira, chupei manga trepado na árvore e joguei bola num gramado.
À noite, deitávamos em colchões de palha de milho espalhados pelo chão, com o cheiro de couro dos arreios pendurados na parede. Nunca esqueci do som da palha que estalava ao menor movimento dos nossos corpos, nem do esforço para não pegar no sono no meio das conversas sobre as aventuras que viriam na manhã seguinte, com os primos queridos. Fiquei com a sensação de que foram três semanas de felicidade ininterrupta.
Nos adultos, a felicidade chega em ondas de cristas à meia altura, contidas pelo entulho das contradições mesquinhas do cotidiano.
Como as memórias carregadas de emoção ficam impregnadas nas profundezas da consciência, tendemos a esquecer de experiências que trouxeram prazer, para dar prioridade às que nos fizeram sofrer. Lembro de detalhes do dia da morte de minha mãe, com mais nitidez do que da viagem a trabalho que fiz ao Acre, três semanas atrás.
Com o passar do tempo, a tristeza atribuída a perdas como essa, pode tornar-se desproporcional à sentida por ocasião do acontecido. Aos 4 anos, acho que nem fiquei triste, apenas surpreso com a reação dramática dos mais velhos. Só depois viria a compreender que morte é a ausência definitiva. A impressão de que aquele dia talvez tenha sido um dos mais infelizes, veio bem mais tarde, fruto da reflexão racional sobre o significado da perda da mãe na primeira infância.
Na vida adulta, a felicidade costuma nos visitar em situações que veem ao encontro de expectativas íntimas. A duração da visita dependerá da intensidade do desejo, do esforço para atingir aquele objetivo, do valor dado a ele e da ansiedade com que aguardávamos o desfecho.
Na maioria das vezes, entretanto, nem guarda relação com o mundo real, ocasiões em que não passa de um lampejo trazido à tona por uma lembrança agradável, uma música, uma fantasia ou até por um sonho que sabemos impossível.
É a busca incessante pelo prazer intenso, que faz o sucesso das drogas psicoativas. O álcool, o baseado, a carreira de cocaína têm o dom de nos resgatar das tarefas repetitivas, das frustrações e dos contratempos comezinhos que nos infernizam, para nos transportar ao paraíso em segundos. Na cadeia, conheci uma moça que comparou o efeito do crack a cem orgasmos simultâneos. Imagine você, leitora, que fica radiante quando consegue um.
Nos adultos, a felicidade chega em ondas de cristas à meia altura, contidas pelo entulho das contradições mesquinhas do cotidiano. Explosões que levam às fronteiras com a loucura, só conhecem os que vivem uma paixão amorosa ou situações excepcionais como a do nascimento de um filho, de uma neta ou a do jogador que faz o gol da vitória na final do campeonato.
A maturidade, no entanto, não me fez desistir de correr atrás da felicidade suprema, embora saiba que ela será episódica e fugaz, fatalmente turvada por pensamentos invasores e pela maldita insatisfação humana, até acabar confinada ao quarto de despejo do subconsciente.
Drauzio Varella é médico cancerologista e escritor. Foi um dos pioneiros no tratamento da aids no Brasil. Entre seus livros de maior sucesso estão Estação Carandiru, Por um Fio e O Médico Doente.
© Copyright RedeGN. 2009 - 2024. Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do autor.