O republicanismo como forma de governo foi adotado no Brasil em 1889. Desde então, houve protagonismo de movimentos políticos organizados por militares no País, demonstrando proximidade do grupo com a política. Exemplos são o Movimento Tenentista, de 1922, e o golpe ocorrido em 1964.
Em entrevista ao projeto Ciclo22, o professor de história Marcos Napolitano, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em São Paulo, analisa esses movimentos, comenta a relação deles com o episódio terrorista do dia 8 de janeiro em Brasília e sugere a maneira pela qual a historiografia pode nomear os atos.
Os militares mantêm uma relação histórica de proximidade com a política no Brasil. Essa relação iniciou-se com a proclamação da República ou já existia nos períodos monárquico e imperial?
Podemos dizer que nos últimos dez anos do Império o ativismo político dos militares, principalmente os jovens cadetes e oficiais republicanos, aumentou muito e tornou-se um elemento central da política brasileira. Mas eu considero que só a partir de 1937, com o Golpe do Estado Novo e com as reformas internas promovidas pelo General Góes Monteiro, as Forças Armadas como instituição se tornaram um ator central na política brasileira.
O que episódios de protagonismo desse grupo indicam sobre a relação política entre eles e grupos civis, como o Movimento Tenentista e a Ditadura de 1964, por exemplo?
O aspecto central que ajuda a compreender a relação entre militares e grupos civis pode ser resumido em dois pontos. Em primeiro lugar, um imaginário militar “salvacionista” muito consolidado na caserna que propaga a ideia de que apenas os militares podem resguardar o Estado Nacional brasileiro contra as “politicagens e a corrupção” dos políticos civis. Por outro lado, a visão de que a sociedade brasileira é indefesa diante dos perigos internos e externos, e cabe aos militares manter a ordem social. Estes dois pontos fizeram os militares adotarem um pensamento político autoritário e centralista durante a República, ainda que em linhas gerais falassem em defesa da ordem e da democracia (entendida como um regime formal de instituições jurídicas e liberdades individuais que poderiam ser limitadas ocasionalmente). Do tenentismo à ditadura de 1964, em linhas gerais, esta mentalidade se fez predominante.
De que maneira o clima político atual assemelha-se a esses episódios?
Acho que há um grande contingente da sociedade brasileira, entre grupos civis de diversas classes sociais, que não acredita na democracia, que se vê ameaçada socialmente e vê a política como inerentemente contaminada pela “corrupção”. Mas esta mentalidade, que em parte alimentou os projetos autoritários ao longo do século XX, não encontra mais tanto acolhimento institucional como no passado. Embora muito imperfeito, sempre assombrado pelo golpismo como forma de resolver conflitos (como em 2016) e muito elitista em vários aspectos, o sistema político brasileiro adotou a forma democrático-liberal. Por outro lado, ainda subsiste em muitas lideranças militares um certo resíduo das doutrinas da Guerra Fria que enxerga em qualquer projeto alternativo de sociedade ou em qualquer conflito social o germe da “subversão” e da “desordem”. Mas as Forças Armadas, como instituição de Estado, têm resistido a uma atuação mais direta e forte na vida política, como ocorreu até os anos 1980. Em síntese, o quadro atual é muito dinâmico e complexo, pois também há uma nova extrema direita civil que, mesmo reivindicando a “ditadura” e a “intervenção militar” todo o tempo, guarda pouca relação com as direitas do passado. Uma das diferenças é que a extrema direita atual é contra o Estado, e professa valores privatistas como o culto à família normativa e ao individualismo de mercado.
Há uma memória positiva em relação ao período ditatorial pelo qual passou o país entre 1964 e 1985. O que alimenta essa memória?
Eu tenho a hipótese que esta memória foi alimentada por dois processos que se combinaram desde os anos 1980: uma transição negociada que apostou no “esquecimento” e não puniu os crimes de Estado, dificultando a disseminação social e consolidação de uma cultura de Direitos Humanos, e uma memória privada e familiar que foi transmitida de geração para geração marcada pela nostalgia autoritária da ditadura como um tempo de bonança econômica e segurança pública, o que obviamente é muito questionável diante dos fatos que marcaram o período, cheio de crises econômicas e urbanização desenfreada que aumentou a violência social. Ao lado destes elementos, poderíamos adicionar uma frágil educação histórica nas escolas e na própria sociedade como um todo. Por fim, há no Brasil uma tradição de violência de Estado contra os mais pobres que é anterior à ditadura, e sobreviveu a ela, incrementada pela militarização da segurança pública, que ajudou a diluir o período na memória social, sob este aspecto.
É possível afirmar que essa memória impulsionou a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018?
Em parte, sim, mas acho que surgiram elementos novos, como uma nova extrema direita que partilha valores religiosos e de mercado. Bolsonaro, em sua ousadia política e falta de decoro, levou para o espaço público muitos valores que já circulavam em espaços privados e familiares, como o elogio da violência de Estado e da tortura contra “bandidos”, a nostalgia autoritária e a descrença na democracia como sistema socialmente inclusivo. Mas a eleição de Bolsonaro só foi possível pela degradação da rotina político-institucional no Brasil, com a emergência de um sentimento antissistema nas Jornadas de 2013, canalizada pelo Lavajatismo, e com o Golpe de 2016. Os políticos liberais de centro-direita apostaram em uma saída para esta crise, mas o resultado foi outro.
Os atos terroristas ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro foram impulsionados por essa memória?
Acho que não, ao menos diretamente. Há outros elementos que culminaram neste episódio que ainda devem ser mais estudados. O que ocorreu foi uma tentativa de levante autoritário e neofascista contra a democracia, mas que também, em parte, se voltou contra os símbolos máximos do Estado brasileiro que são as sedes dos três poderes republicanos. Este elemento antiestatal é novo, e não era uma marca das direitas brasileiras do passado. Há uma combinação um tanto esdrúxula de ressentimento das classes médias (e até de certos grupos populares inoculados pelo fanatismo religioso) com ultraindividualismo de mercado, temperado pela nostalgia autoritária de um mundo hierárquico e centrado no poder familiar patriarcal e no controle militar sobre a política. Há também interesses de empresários em desqualificar e destruir as políticas públicas e o regramento de suas atividades por parte do Estado, sobretudo entre financiadores.
Quais saldos esses atos deixaram para a historiografia nacional?
Deveriam ser lembrados como o “Dia da Infâmia” contra a democracia brasileira, como propôs o Senador Randolfe Rodrigues. Quanto ao saldo político e social, ainda é cedo para avaliar, mas espero que esta experiência traumática fortaleça a democracia e acenda o alerta contra estes grupos de extrema direita neofascistas que querem o caos para poder se impor pela força e pela violência. Quero crer que as pessoas e grupos conservadores que não se identificam com estes terroristas e delinquentes fortaleçam seus valores republicanos e se afastem do bolsonarismo. Mas, sendo realista, não tenho muita confiança que isto irá acontecer.
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