Nada tem sido mais constante no Brasil do que a pauta da reforma tributária. Entra governo e sai governo e essa continua sendo considerada a prioridade das reformas.
Recém foi empossado o presidente Lula, e as articulações políticas para destravar os mesmos projetos de reforma que já estavam pautados pelo governo anterior se intensificam, na mídia e no Parlamento, como se o desenho do sistema tributário não tivesse nenhuma relação com o projeto político escolhido pela sociedade nas eleições presidenciais.
Essa mania de tratar o sistema tributário como algo puramente técnico, cuja configuração independeria da política e dos objetivos estabelecidos pelos governos, serve, muitas vezes, para esconder concepções ideológicas e articulações de grupos de interesses, não raramente, contrários ao próprio projeto político que venceu as eleições.
Afinal, os tributos são instrumentos e controlar os instrumentos é uma forma eficaz de interferir nos resultados. Talvez seja o momento de se repensar esse processo, pois, parafraseando Einstein, seguir fazendo a mesma coisa, esperando um resultado diferente, é sinal de insanidade.
Será que um projeto de reforma tributária que servia ao governo Bolsonaro, que tinha por objetivo minimizar o Estado, privatizar as políticas públicas e reprimarizar a atividade econômica, seria o mesmo projeto de reforma que poderia atender os propósitos do governo Lula, que defende o Estado social, o fortalecimento das políticas públicas e do papel do Estado, e o desenvolvimento industrial e tecnológico do país? Um mesmo sistema tributário seria capaz de atender igualmente os defensores de uma economia sustentável e aqueles que defendem a uma economia primária e predatória? Obviamente que não. O sistema tributário nunca será neutro.
Portanto, precisamos identificar, inicialmente, os interesses que sustentam as propostas com maior acúmulo de discussões no Congresso Nacional. Tanto a PEC 45, quanto a PEC 110, ambas tramitando no Parlamento, propõem alterar a estrutura dos tributos indiretos, promovendo uma suposta simplificação do sistema, que seria decorrente da unificação de diversos tributos em um ou dois impostos sobre valor adicionado.
Os interesses diretamente contemplados por estas propostas são ligados basicamente às grandes corporações empresariais, que vislumbram com estas medidas a possibilidade de redução dos seus custos operacionais e desoneração das suas exportações.
Para a imensa maioria da população, no entanto, essas medidas estão longe de resolver o principal problema do sistema tributário brasileiro, qual seja, a sua regressividade estrutural, que impõe a priorização de medidas que promovam a elevação dos tributos sobre altas rendas e grandes riquezas e a redução dos tributos indiretos.
Medidas como a implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas, único imposto previsto na Constituição que ainda não vigora, revogação da isenção de Imposto de Renda para os lucros e dividendos distribuídos, revogação da dedutibilidade dos juros sobre o capital próprio, combinadas com a elevação do limite de isenção do Imposto de Renda e a redução de tributos que incidem sobre o faturamento das empresas, são aquelas que poderiam atender diretamente o interesse de mais de 90% da população brasileira e produzir condições muito mais favoráveis à atividade econômica produtiva e à geração de empregos.
A insistência na priorização da reforma dos tributos indiretos tem interditado a discussão e a tramitação de propostas de alterações pontuais na legislação tributária, com vistas à elevação dos tributos diretos sobre as altas rendas e sobre as grandes riquezas, que poderiam ser implementadas sem a necessidade de emenda constitucional e que teriam capacidade de melhorar de forma muito substancial a qualidade do sistema tributário brasileiro.
As propostas de reformas dos tributos sobre o consumo, embora sejam apresentadas com a atrativa finalidade de promover simplificação, trazem, em seu bojo, questões extremamente sensíveis à organização federativa do Estado brasileiro, uma vez que interferem nas competências tributárias dos três entes da federação, além de interferir na forma de financiamento da Seguridade Social. Tanto a organização federativa da República quanto a existência de um orçamento específico, com fontes próprias de financiamento, para garantir a Seguridade Social, são elementos estruturantes do Estado social brasileiro, e esses temas transcendem muito o espaço da tributação.
O pacto federativo e o pacto social são construções históricas do povo brasileiro e não podem ser modificados por medidas de natureza tributária sem que sejam amplamente debatidos por toda a sociedade. O "como (tributação)" não pode determinar o "que (modelo de Estado)".
Os obstáculos para a aprovação das reformas dos tributos sobre o consumo não foram ainda superados, pois as questões centrais, do federalismo e da proteção social, não foram suficientemente discutidas pela sociedade. Enquanto essa pauta não anda, as distorções existentes na tributação da renda e a omissão injustificável em relação à tributação das grandes fortunas permanecem sem ser resolvidas.
O modelo de tributação que poderia servir ao governo Bolsonaro, obviamente, não é o mesmo que pode servir aos propósitos do governo Lula, pois o primeiro governava para anular a Constituição Federal e o segundo, será para fortalecê-la. O certo é que, sem modificar a estrutura do Estado brasileiro, é perfeitamente possível promover modificações importantes na tributação, começando pelos tributos da União, que representam cerca de 70% de toda a arrecadação nacional e que incidem, praticamente, sobre todas as bases, renda, patrimônio e consumo.
Assim, modificações pontuais na tributação federal seriam suficientes para tornar progressivo o conjunto dos tributos brasileiros em consonância com os preceitos constitucionais.
Além disso, tais correções podem fazer com que a tributação se torne também funcional para o desenvolvimento econômico do país. Aumentar a tributação sobre altas rendas e instituir o Imposto sobre as Grandes Fortunas, por exemplo, permitirá reduzir substancialmente os tributos federais sobre as rendas mais baixas dos trabalhadores e sobre o faturamento das empresas, promovendo redução das desigualdades sociais e ampliação da atividade econômica pelo aumento da disponibilidade de renda à população. Mesmo a desejada simplificação poderia ser promovida com muito mais efetividade por mudanças pontuais na tributação federal, sobretudo em relação à legislação do PIS/PASEP, da COFINS e do IRPJ/CSLL.
Estão também sob competência da União praticamente todos os tributos de natureza regulatória, que poderão ser modulados para dar concretude aos propósitos anunciados pelo novo governo de promover a retomada da industrialização, a geração de empregos, a proteção ao meio ambiente, o desenvolvimento tecnológico e a transição energética, entre outros.
Por fim, é relevante reafirmar que nenhuma reforma tributária atenderá a todos igualmente e servirá a qualquer projeto político da mesma maneira. As escolhas são sempre políticas, mesmo aquelas relativas ao estabelecimento de ordem de preferência entre diferentes encaminhamentos possíveis, e não se resumem apenas em definir quem será contemplado e quem será onerado, mas qual o modelo de Estado, de sociedade e de desenvolvimento que se quer promover.
Dão Real Pereira dos Santos - Presidente do Instituto Justiça Fiscal e coordenador da campanha Tributar os Super-Ricos
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