O governo Lula (PT) assume a gestão da saúde mental do país prometendo retomar os princípios da reforma psiquiátrica e fechar os últimos hospitais exclusivos para pacientes com transtornos psíquicos.
A ideia central da nova equipe é expandir e integrar toda a rede de serviços, principalmente as equipes de saúde da família e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial), focando as populações mais vulneráveis, como as pessoas em situação de rua.
A visão é essencialmente contrária à dos governos de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), que frearam o financiamento de novas unidades e priorizaram estruturas para casos graves e comunidades terapêuticas para dependentes químicos, em sua maioria religiosas.
"Voltaremos ao leito do que estava sendo construído antes", defende Helvécio Miranda, médico que assume nesta semana a Secretaria de Atenção Especializada, responsável pelo tema e subordinada à ministra Nísia Trindade. Ele já havia comandado outra secretaria nos anos de Dilma Rousseff (PT).
"Vamos fazer um diagnóstico de onde se aprofundaram os vazios assistenciais, voltar a interlocução com outras pastas como Educação e Cultura e continuar o esforço de libertar pacientes crônicos ainda em manicômios, o pior tratamento que pode ser dado além da prisão", diz.
Habilitar centenas de Caps que já existem, mas aguardam na fila por recursos federais é a "prioridade das prioridades", responde ele. Sanar o enorme déficit de leitos para pacientes em crise em hospitais gerais também está nos planos: "Desde que não seja manicômio, tudo é bem-vindo."
É incerto ainda, porém, o que vai ocorrer com as tais comunidades terapêuticas, que tiveram a verba dobrada e as vagas sextuplicadas pelo finado Ministério da Cidadania de Osmar Terra (MDB). Miranda crê que a função delas foi distorcida, porém prega cautela e diz que ainda é cedo para decidir o que será feito com as mais de 700 unidades já financiadas.
Formalmente, elas são organizações sem fins lucrativos criadas para acolher usuários de álcool e drogas que escolhem estar ali e têm liberdade sobre suas decisões. Na prática, no entanto, parte é acusada de maus-tratos e violações aos direitos humanos por diferentes órgãos.
O primeiro entrave aos planos da nova gestão será, como em outras áreas, o orçamento. A saúde mental costuma abocanhar menos de 2% do orçamento do Ministério da Saúde, muito abaixo dos 6% recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
O valor é irrisório para tratar de um país que perde mais gente para o suicídio do que para acidentes de moto ou HIV. O total de mortes autoprovocadas dobrou nas últimas duas décadas, escancarando uma multidão de deprimidos e ansiosos impulsionada pela pandemia.
Se quiser alargar a rede, portanto, a gestão petista terá que remanejar as cifras da Saúde, em disputa acirrada desde a elaboração do Orçamento de 2023. Miranda admite que até aqui o dinheiro é insuficiente e diz que vai destrinchar os números nas próximas semanas.
Pode ajudar o fato de que, pela primeira vez, a saúde mental foi alçada a departamento —antes era uma coordenação dentro de um departamento. Segundo Arthur Chioro, que coordenou a equipe de transição da saúde de Lula, uma pessoa já foi convidada para chefiá-lo, porém ainda não confirmou.
O que foi decidido até aqui é que, abaixo dessa pessoa, haverá dois diretores, que cuidarão da operação e da expansão e avaliação da rede, mas também uma diretoria técnica colegiada de diferentes regiões do país para descentralizar as decisões.
"A guerra do governo com os estados e municípios ficou para trás", afirma o novo secretário, que promete ainda interlocução com os conselhos nacionais de secretários de Saúde dos estados e dos municípios (Conass e Conasems).
Outros compromissos que ele assume são retomar a Conferência Nacional de Saúde Mental e a publicação de relatórios anuais com dados epidemiológicos, de administração e avaliação dos serviços.
A gestão Bolsonaro deixa a saúde mental sob duras críticas de profissionais da área pela falta de participação popular e transparência e pela publicação de portarias que, para eles, desestruturaram a rede de atenção psicossocial (Raps) —o novo ministério diz que vai criar um grupo de trabalho para analisá-las.
Na visão do psiquiatra Rafael Bernardon, que foi o coordenador nacional da saúde mental até o último dia 31, porém, a avaliação é outra. "Deixamos um arcabouço legislativo para equilibrar a rede, da atenção básica até a hospitalar", defende.
Ele argumenta que paralisou o registro de novos Caps para "induzir o planejamento regional", porque havia muitos pedidos sobrepostos, e diz que sofreu entraves para implantar equipes ambulatoriais e leitos por um "boicote sistemático dos estados" e "amarras ideológicas".
"O entendimento ainda é aquele de que o único caminho possível é o Caps tradicional, não o Caps com estrutura médica maior, por exemplo. Enquanto a amarra ideológica continuar travando o sistema, não teremos no SUS o que o sistema privado oferece", afirma ele, que agora vai se dedicar ao seu consultório particular.
O psiquiatra reconhece que a saúde mental não era tratada como prioridade no antigo governo e que, na disputa por recursos, a área nem sempre levava a melhor. "Houve aumento de serviços na rede, mas deixo alguns na fila porque não teve orçamento para habilitar em 2022."
Até agora não houve uma troca entre a antiga equipe e a nova, e ainda restam muitas dúvidas sobre o futuro da saúde mental no Brasil. Na próxima terça (10), a equipe de transição de Lula deve divulgar um relatório específico da Saúde com mais detalhes, como fez com o relatório geral em dezembro.
Por enquanto, continua no limbo, por exemplo, um resquício sombrio dos manicômios no país: ainda é incerto o que será feito sobre os presídios e centros de custódia, abarrotados de presos com transtornos mentais sem condições mínimas de tratamento.
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