ARTIGO - O essencial é invisível aos olhos

29 de Dec / 2022 às 23h00 | Espaço do Leitor

Nos dias atuais não há um mote que domine mais o discurso público de que o tema transparência. Ele é avocado enfaticamente e conjugado sobretudo com o  conteúdo da liberdade de informação.

A exigência de transparência, presente por todo lado, intensifica-se de tal modo que se torna um fetiche e um assunto totalizante, remontando a uma mudança de paradigma que não se limita aos âmbitos da política e da sociedade.

A sociedade da transparência vai se tornando uma sociedade positiva quando elimina toda e qualquer negatividade, quando se encaixa sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação. As ações se tornam transparentes quando se transformam em operacionais, quando se subordinam a um processo passível de cálculo, governo e controle.

A sociedade positiva, por sua vez, não admite qualquer sentimento negativo. Desse modo, somos levados a esquecer como se lida com o sofrimento e a dor, olvidando como lhes dar forma, sem se atentar que a alma humana deve a sua profundidade, grandeza e fortaleza precisamente ao demorar-se junto ao negativo, na perspectiva do paradoxal Nietzsche.

O veredicto da sociedade positiva é este: “ME AGRADA”. Para justifica-lo, evita-se todo e qualquer tipo de negatividade, pois esta paralisa a comunicação. Seu valor é medido pela quantidade e velocidade da troca de informações, onde a massa de comunicação eleva seu valor econômico e veredictos negativos a prejudicam.

Na realidade tudo e todos (seres humanos), agora transformados em  mercadorias, têm de ser expostas  em favor de seu valor expositivo. Em vista desse valor ( expositivo), sua existência perde totalmente a importância. Pois tudo que repousa em si mesmo, que se demora em si mesmo, passou a não ter mais valor, só adquirindo algum valor se for visto. A coação por exposição que coloca tudo à mercê da visibilidade, faz desaparecer a aura  enquanto manifestação de uma distância.

Esse fenômeno não deixou ninguém incólume, pois até a classe dos renomados escritores, outrora apresentados pelas suas graduações, titulações, obras literárias produzidas, hodiernamente, são apresentados levando-se em consideração, tão somente, o número de seguidores nas “redes sociais” (o constrangimento é nítido e perceptível nas suas faces nesse momento).

A fotografia, recurso muito utilizado nas redes, perdeu as dimensões artística e afetiva, principalmente a última que era utilizada como recurso sentimental e afetivo destinada para recordar algo, alguém ou determinado momento que foi importante para a pessoa.

Se outrora, num passado não tão remoto, o processo fotográfico era limitado por filmes com restrição numérica compostos de 24 ou 36 poses, os quais eram submetidos a posterior revelação, hodiernamente a fotografia é instantânea, rápida de ser tirada, armazenada, enviada e deletada, não havendo limites para a sua tiragem, permitindo a sua edição prévia pelo próprio usuário e velozmente veiculada nas redes sociais, cujas sucessão de imagens assemelham-se a um filme, por retratarem a vida de quem as posta, não com narrativas, mas com a mera exibição, esperando-se o número de likes ou curtidas para va lida-las.

A facilidade de se divulgar fotos e vídeos pelas redes sociais, inclusive ao vivo, para mostrar uma pseudo-imagem de felicidade, tem estreitado a fronteira entre o virtual e o real.

Decerto todos nós somos vítimas da sutileza do marketing, estratégia utilizada para alavancar necessidades numa sociedade de consumo, que direciona o foco das realizações pessoais para as metas de sucesso e de felicidade,  as quais se restringem, na maioria das vezes, ao êxito financeiro, resultando num endeusamento do trabalho compulsivo , sem mensurar as árduas renúncias realizadas nos âmbitos familiar e social.

Não por acaso que as doenças neurais como depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade ( TDAH), transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a síndrome de burnout determinam a paisagem patológica do começo do século XXI.

A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível (positividade tóxica), tornando-o inválido dessa guerra internalizada. A depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sobre o excesso de positividade. Reflete uma humanidade que está em guerra consigo mesma.

Para o indivíduo contemporâneo existe uma necessidade frenética de apresentação de uma imagem de realização e satisfação pessoal. Mesmo tendo conhecimento da dissimulação com que a imagem se encontra revestida e doa o quanto a infelicidade impera na sua vida, o indivíduo tende a negar a referida condição ao se identificar com a expectativa das demais pessoas que compartilham as mesmas expectativas de sucesso e felicidade o que, numa sociedade altamente competitiva a nível comercial quanto pessoal, faz vicejar o sentimento de inveja, causando desprazer naqueles que não conseguem atingir a imagem socialmente valorizada do “bem-sucedido" despertando a frustração consigo próprio e ódio em relação àquela pessoa que supostamente ostenta a condição de tê-la atingido.

A inexistência de um contato íntimo em que se permite uma troca de afetos e experiências nos conduz a nos relacionarmos muito mais com personagens do que com pessoas de fato, acarretando uma despersonalização no processo de socialização e consequências no processo de formação do indivíduo, haja vista a identificação passar a ser caracterizada pela impessoalidade e as celebridades veiculadas pela mídia assumirem a função de parâmetros que, por sua vez, auxiliarão nos modismos, como a aquisição de roupas de determinadas marcas, dentre inúmeros objetos de consumo utilizados por estes “modelos”, cuja função precípua é de direcionar e exortar a população à alavancagem do consumo, na maioria das vezes supérfluos e desnecessários.

A situação também se reflete na área comercial, pouco importando a autenticidade do conteúdo, pois o que acaba seduzindo e aglutinando as pessoas são os padrões superficiais de comportamento, uma vez que é muito mais fácil apresentar um perfil de personalidade ou modelo idealizado e bem sucedido que facilmente poderia se desmoronar num contato face a face com os outros.

Como meros simulacros, os ambientes virtuais apenas podem garantir aos indivíduos um prazer mecanizado e compulsivo em razão da padronização neles envolvida.

 Nos tornamos voyeurs  e exibicionistas, renunciando o prazer que poderia e pode ser obtido nas relações que envolvam contato íntimo, justamente por se apresentarem como forma de ameaça para nós e a entrega da intimidade é o preço pago pelas pessoas poderem se integrar à lógica da obsessiva exposição presente nas redes sociais, consideradas como o principal canal de comunicação interpessoal existente na atualidade.

Uma sociedade, como a atual, em que até mesmo as relações afetivas estão sedimentadas e mediadas pelo valor de troca, não existe oferta de espaço propício para a formação de relações íntimas.

Na sociedade expositiva, cada sujeito é seu próprio objeto propaganda; tudo que se mensura em seu valor expositivo e o excesso de exposição transforma tudo em mercadoria que está à mercê da corrosão imediata e a coação velada ( ou acintosa) para utilização das redes sociais nos rouba, em última instância, nossa própria face.

Para o competidor ávido por informações que pretenda ser tornar um profissional diferenciado na sua área, necessário trazer à baila que o excesso de informação faz com que o pensamento definhe. A faculdade analítica consiste em deixar de lado todo o material perceptivo que não é essencial ao que está em questão. Ela é, em última instância, a capacidade de distinguir o essencial do não essencial. A enxurrada de informações à qual estamos submetidos, evidentemente, implica na capacidade de reduzir o que é essencial.

Definitivamente, mais informações não leva necessariamente a melhores decisões, haja vista a partir de um determinado momento, a informação não ser mais informativa e a comunicação não ser mais comunicativa, mas, cumulativas.

O medo das pessoas de se entregarem aos relacionamentos íntimos, visível no voyeurismo  e no exibicionismo explícito , indica o enfraquecimento do ego no mundo contemporâneo, o que tem possibilitado a formação acentuada dos distúrbios anteriormente citados dentro da sociedade atual, os quais não foram proporcionados por uma alteração isolada e natural da dinâmica psíquica, mas mediado por forças objetivas, cujos principais expoentes foram o crescente desenvolvimento tecnológico e as mudanças econômicas que ocasionaram uma maior perda da autonomia individual, uma vez que, em tempos não tão remotos, o indivíduo poder ia traçar um projeto de vida para a sua família, pois o futuro não era tão incerto ( o mundo não era líquido) e o presente dava condições para o progresso dentro da escala social.

Paradoxalmente, o desenvolvimento tecnológico que deveria trazer a possibilidade de maior liberdade aos indivíduos , o aprisionou na medida em que a sua mobilidade transformou todo lugar em ambiente de trabalho e todo o tempo em tempo de trabalho. A liberdade da mobilidade se inverte na coação fatal de ter de trabalhar em todo lugar.

Na era das máquinas, o trabalho simplesmente por causa da imobilidade daquelas, era delimitável pelo espaço onde o ser humano deveria utiliza-las.

O universo digital tem feito com que as pessoas sejam, ao mesmo tempo, deuses na aparência por meio de criação de sentimentos envolvendo onisciência, onipresença e onipotência e escravos pela exposição incondicional da sua vida privada, levando-as a manterem-se conectadas para não perderem quaisquer acontecimentos, obsessão que eleva a ansiedade e as adoece.

“Amigos” de redes sociais são, antes de tudo, contado. Hoje tudo é tornado enumerável, a fim de poder ser convertido na linguagem do desempenho e da eficiência.

As pessoas anseiam por notoriedade em troca da perda da sua privacidade , situação perfeitamente retratada nos realitys shows, servindo tanto como objetos de estimulação sexual, quantos modelos identificatórios, uma vez que muitos artistas representantes do sucesso na atualidade,  utilizam de forma explícita a sexualidade como artifício para aglutinar maior números de fãs ( leia: seguidores).

Nas redes sociais, ao mesmo tempo em que a pessoa observa, ela se exibe mostrando os seus momentos de êxito e felicidade, estabelecendo-se um tipo de competição entre “celebridades” anônimas.

Não é por acaso que o recurso de utilizar a votação popular nos meios midiáticos de entretenimento para atrair a atenção do grande público é muito forte, pois é uma forma do telespectador participar de maneira ativa na produção.

É como, de certa forma que, aquela pessoa para quem o telespectador atribui um voto positivo, pudesse ser ele próprio.

Aliás, a competição de egos no âmbito virtual propiciada pelas redes sociais tem permitido que indivíduos comuns, perante os seus pares, aspirem assumir a condição do que seria uma “celebridade anônima” por meio da constante exposição de fotos e vídeos, havendo intercâmbio de informações e mensagens entre eles.

A nossa sociedade se transformou em narcisista e , sem sentir, de forma bastante sutil , pelo efeito manada, abriu as portas para a depressão que também é uma enfermidade narcisista, uma vez que a autorreferência exagerada e doentiamente carregada adoece o seu portador, pois produz outra dimensão de estímulos: pressão social; e as pessoas são extremamente sensíveis a questões como status social, julgamento e competição. ( teme-se não ser descolado, atraentes ou de status social elevado).

As mídias sociais acentuam esse desenvolvimento por serem mídias narcisista.

Na realidade, existe uma armadilha adrede preparada para o seu usuário, uma vez que o organismo reage aos estímulos como se recebesse uma dose de dopamina, porque ao receber um like em uma fotografia ( postagem) ou um comentário positivo, esse circuito de feedback lhe confere validação social e prazer e,  como consequência lógica, são criados ciclos de feedbacks de curto prazo impulsionados pela dopamina que estão destruindo a sociedade.

Não bastassem as mazelas acima mencionadas como suficientes e necessárias a uma profunda reflexão sobre a utilização das redes sociais, existem os algorítmos que também alimentam vícios humanos, principalmente por compras. O algoritmo tenta capturar os parâmetros perfeitos para manipular um cérebro que, por sua vez, muda em resposta aos experimentos do algoritmo para buscar significados mais profundos.

Todos que estão (estamos) nas redes sociais recebem estímulos individualizados, continuamente ajustados, sem trégua; é só estar usando um smatphone para se tornar um alvo ( ou vítima). O que antes podia ser chamado de propaganda deve agora ser entendido como uma modificação de comportamento em escala gigantesca.

O mais desumano é que nesse mundo idealizado, os usuários são submetidos a emoções densas como medo e raiva, que vêm à tona mais facilmente e ficam por mais tempo que as emoções positivas, tornando campo propício para a manipulação.

Afinal, trata-se de um universo com representações que nem sempre correspondem à realidade, pois é muito difícil ter uma vida muito saudável, feliz o tempo todo e livre de problemas e essas circunstâncias se refletem negativamente nas pessoas com uma baixa autoestima, lhes tornando vulneráveis à manipulação, pela ação do algoritmo.

O ser humano traz na sua própria essência os seus sismos existenciais, as dores necessárias à maturidade e elevação espiritual, o que costumo denominar de cicatrizes existenciais e uma insatisfação crônica que o faz ansiar por mais do que o necessário.

A sociedade atual ainda precisa alcançar o patamar de humana e para que isso aconteça é necessário experimentar todos os temperos da existência: a alegria, a tristeza, a dor, o amor, a decepção, dentre outras inúmeras emoções necessárias ao crescimento como humano e elevação espiritual, trazendo as cicatrizes existenciais como marcas de que valeram à pena a sua existência. Afinal, somos seres sociais e foi essa condição que nos fez vencer os desafios da caminhada.

Precisamos ter em mente que não existe ser humano transparente, pois é justamente a falta de transparência do outro que mantém viva a relação. A possibilidade de novas descobertas nos motiva e rega o jardim das relações interpessoais.

O sagrado não é transparente. Ao contrário, ele é caracterizado por uma impressão misteriosa.

Segundo Santo Agostinho ( ou Agostinho bispo de Hipona), Deus teria colocado metáforas e obscurecido a Sagrada Escritura intencionalmente para gerar maior prazer: “ Essas coisas são recobertas com um manto figurativo para que mantenham o exercício compreensivo da reflexão fiel da pessoa que escrutina e não pareçam sem valor, se forem apresentadas desnudas e abertas.

O próprio Jesus se utilizava das parábolas nos seus ensinamentos.

Se quando chega ao ponto de utilizar um aparelho de bolso para chamar um táxi ou uber, pedir comida ou descobrir, em tempo real, onde os amigos estão, dentre inúmeras possibilidades, é um tanto complicado retroceder, mas o que se deve realmente rever são as nossas vulnerabilidades, principalmente nos relacionamentos interpessoais, cônscios da inexistência de um mundo perfeito, pois todos os seres humanos travam , diariamente,  batalhas bastantes peculiares e que o isolamento nos torna mais vulnerável. Somos seres sociais e foi essa condição que nos trouxe até aqui.

Cada ser humano tem um potencial dentro de si que lhe torna único e belo. A pior pobreza que um ser humano pode acalentar é a de espírito, pois ele não é o que come , o que veste ou que possui. Desta jornada não saímos com títulos, bens e dinheiro, mas com essa bagagem de experiências que precisamos e devemos nos permitir. Afinal, o essencial é invisível aos olhos”.
“Daquilo que os outros não sabem sobre mim; disso eu vivo.” Peter Handke

Em tempo, quero deixar bem claro que o conteúdo não detém qualquer cunho de natureza científica, retratando, tão somente, a ótica do seu subscritor que respeita óticas antagônicas e foi compelido a tentar entender o aumento de depressão e suicídio de jovens ( fase de maior alegria da sua geração), a exposição exacerbada de rotinas de pessoas conhecidas e a hostilidade de pessoas frente a um registro fotográfico que mostrava um pai e filho sorrindo num café.

Rivelino Liberalino Almeida Rodrigues é um estudante que durante 27 anos tenta aprender direito do trabalho, que reside na pujante e bela Petrolina ( corpo) e que trabalha na calorosa e inspiradora Juazeiro ( alma)

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