A primeira semana da transição do governo produziu estragos financeiros – queda da Bolsa e alta do dólar -, consequência das desastrosas declarações do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.
A reação negativa do mercado financeiro não se deu à toa. Lula parece ter descido do palanque, passando a falar o que realmente pensa, ignorando significativa parte de seus apoiadores esclarecidos. Um discurso que ninguém esperava.
A fala de Lula demonstrou que o presidente eleito é incapaz de compreender que não existe projeto social sem controle do déficit fiscal, do endividamento e da inflação. O desapontamento geral é compreensível.
Lula disse não saber porque se propõe meta fiscal e de inflação e não meta de crescimento do PIB. Difícil entender porque o eleito não assimilou que a estabilidade social só será possível com a estabilidade fiscal e pacificação do mercado e da sociedade, conforme prometido na campanha. Por que Lula transparece temer os mercados e não a fome, mazela mais grave do país e que ele tanto promete erradicar?
Alguns dos notáveis que emprestaram seus nomes com apoio incondicional à candidatura lulista, acreditando que Lula pretendia voltar à Presidência para fazer o que não fez nos seus oito anos no governo e corrigir os enormes danos causados nos seis anos de governo Dilma, conforme noticiado pela imprensa, já estão descontentes, preocupados no sentido de que a nova gestão pode não ser o prometido "governar para todos", mas uma administração ainda fortemente amarrada aos velhos dogmas petistas, em que pese o verniz plural que se pretendeu dar com a composição da equipe de transição.
A imprensa também noticia que aliados de peso como Henrique Meirelles e Armínio Fraga, ambos ex-presidentes do Banco Central já manifestaram desejo de afastamento. Por outro lado, petistas e antigos aliados como Martha Suplicy, Guido Mantega, Jader Barbalho e Renan Calheiros ganham prestígio nessa fase transitória e podem alcançar protagonismo no governo que começa em 1º de janeiro de 2023.
Lula volta depois de 12 anos e parece não compreender que o mundo mudou e é muito diferente do período em que governou o Brasil. As mudanças provocadas pelas crises dos setores financeiros e hipotecário, e pela pandemia da Covid-19 – responsável pela geração de déficits gigantescos, baixíssimos índices de crescimento e até retrações expressivas – se soma aos agravantes geopolíticos decorrentes da invasão da Ucrânia pela Rússia, conflito que já dura mais de 250 dias e trouxe de volta ao mundo o temor do uso de armas nucleares.
Esses acontecimentos provocaram danos significativos nas contas públicas de todos os países e a volta da inflação perto de dois dígitos em países da Europa e da América do Sul e até nos Estados Unidos (superior a 8%, a maior em quatro décadas, superando a inflação brasileira, de 6,8%). A crise ainda não foi superada. O barril de óleo cru (brent), que no final de 2019 custava US$ 63,02, caiu para US$ 51,51 em 31 de dezembro de 2020, e agora, depois de superar US$ 120, recuou e está relativamente estável em nível alto, quase US$ 100. Também subiram os preços dos grãos, dos combustíveis, do transporte e, sobretudo, dos alimentos. Esse desalinhamento de preços se soma à escassez de produtos para tornar o cenário econômico ainda mais cinza.
O tempo não foi suficiente para apagar de nossas memórias a retração econômica que o Brasil registrou nos dois últimos anos do governo Dilma Roussef (2015 e 2016) superior a 7% do PIB, fruto do enorme desequilíbrio fiscal que desorganizou a economia brasileira mesmo sem enfrentar os problemas de hoje como a pandemia e a guerra. É por isso que o mercado arrepia quando ouve do presidente eleito justamente o contrário do que esperava sobre responsabilidade fiscal, fundamento básico para o equilíbrio das contas e para o controle da inflação.
Também é preciso lembrar que ao assumir o governo pela primeira vez, em 2003, Lula encontrou o Brasil na 72ª posição mundial em Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ao final de seu segundo mandato, o país já era o 88º colocado nesse ranking da Organização das Nações Unidas (ONU), uma queda acentuadíssima. Uma tragédia. O patamar é parecido com o de hoje e as causas são conhecidas: irresponsabilidade fiscal agravada pela corrupção gigantesca nesse período de 20 anos.
O presidente eleito queimou a largada antes mesmo de receber a faixa presidencial. Não entendeu que responsabilidade fiscal e desenvolvimento social não são incompatíveis. Há tempo, claro, de uma correção de rumo. Entretanto, isso precisa ser feito antes de o barco iniciar a navegação, em mar ainda revolto.
O maior desafio está em recuperarmos o crescimento econômico com maior justiça social, para superar a pífia média de 2,3% ao ano, registrada nos últimos governos a partir da gestão de Fernando Henrique Cardoso (últimos 27 anos). Pior, e preciso destacar que tal crescimento ficou, na média, em 0,8% ao ano nos últimos 12 anos (governos Dilma, Michel Temer e Jair Bolsonaro), muito inferior ao alcançado 70 anos atrás, com Juscelino Kubitschek, quando o Brasil cresceu 8,06% ao ano, índice semelhante à China de hoje, que se firma entre as primeiras economias do mundo.
A Roma antiga já deu a receita para sucesso econômico quando Cícero preconizou: "O orçamento deve ser equilibrado, o Tesouro Público deve ser reposto, a dívida pública deve ser reduzida, a arrogância dos funcionários públicos deve ser moderada e controlada, e a ajuda a outros países deve ser eliminada, para que Roma não vá à falência. As pessoas devem novamente aprender a trabalhar, em vez de viver às custas do Estado".
Pouco adianta o presidente eleito apressar-se em dizer que "o mercado fica nervoso à toa". É preciso enxergar o que o mercado se preocupa seriamente com a proposta de rompimento do teto porque não vê essa medida como um buraco transitório, mas avalia que pode ser um cheque em branco para o novo governo abrir um rombo de R$ 175 bilhões por ano, que se mantido até o final do mandato (2026) elevaria a dívida pública em R$ 700 bilhões, ou seja, cerca de 10% do total da dívida pública brasileira.
A pretensão já externada levaria ao aumento do déficit nominal anual dos atuais R$ 700 a R$ 800 bilhões para R$ 975 bilhões, diferença cujo valor seria suficiente para custear seis anos de operação do SUS. O custo de irresponsabilidade será alto: o país terá de arcar, após os quatro anos de mandato, com pagamento aos banqueiros de juros anuais adicionais de R$ 60 a R$ 80 bilhões por ano, dinheiro suficiente para construir e doar aos mais necessitados 500 mil unidades habitacionais a cada ano.
Lula parece ignorar que anarquia fiscal é o caminho mais curto para descontrole inflacionário, que pune todos, sobretudo os menos favorecidos. O maior tributo pago pelos pobres é o imposto inflacionário.
Já começamos a pagar o preço por uma omissão histórica: na recente política não se discutiu o Brasil, nem no horário eleitoral nem nos debates. Esses preciosos e altamente onerosos espaços, custeados pelos contribuintes, foram capturados pela troca de ofensas e ninguém cobrou dos candidatos um Plano de Metas para o país.
A História nos ensina para que não repitamos os erros do passado. Porém é preciso humildade para querer aprender. Por enquanto, para acalmar a sociedade e aplacar a inquietude provocada por colocações equivocadas, o presidente eleito deveria divulgar de imediato os nomes dos ministros que nomeará para a área econômica.
Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros "Brasil, um país à deriva" e "Caminhos para um país sem rumo". Site: https://samuelhanan.com.br
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