Por mais acaciano que pareça, “a arte da leitura”, diz Nelson Rodrigues, “é a releitura”. Nunca tive dúvidas a respeito. Mesmo que a primeira leitura, sobretudo de certas obras, nos envolva num turbilhão de surpresas, de emoções inimagináveis e de novas descobertas no campo da percepção e do conhecimento, recuperar e reviver esses momentos em dimensão mais profunda só nos é permitido pelo de ato de reler.
Pode parecer paradoxal: se leio um livro apenas uma vez, na verdade não o li. Se ler é construir sentidos e alcançar verdades que nos ajudem a compreender melhor o mundo e seus enigmas irredutíveis, é porque ler é reler, e reler, e reler… Sempre na predisposição de uma prática dialógica que nunca se esgota. Como se sabe, os grandes autores e as grandes obras abordam questões que são permanentes e que nos desafiam para além das épocas e das circunstâncias históricas e individuais.
Por isso não tenho receio de usar o termo “conviver” em lugar de “ler”, pois a convivência pressupõe a continuidade da ação, a partilha e o constante contato com os sinais mágicos, necessários e lúdicos da releitura.
Há autores que não podem ser apenas lidos. Lidos assim, apenas uma única vez. Exigem a releitura, isto é, uma convivência, uma intimidade, que tende a se intensificar com o passar dos dias e dos anos, como se fossem velhos amigos com os quais proseamos nas nossas horas de sossego, silêncio e meditação.
Vou dar três exemplos que, pelo menos para mim, integram essa seleta estante dos que devem ser lidos e relidos sempre, sob pena de perdermos o que existe de mais refinado e de mais precioso no sigilo melódico e semântico de suas frases e de seus versos. Vou ficar com os de casa e me ater a um ficcionista, a um ensaísta e a um poeta que me parecem exemplares dessa idiossincrasia literária e livresca.
Machado de Assis é um desses. É preciso relê-lo sistematicamente para podermos apreciar a sutileza de seu estilo e captar bem a obliquidade leviana de seu olhar sobre as coisas, olhar ao mesmo tempo tocado de humor e melancolia. Um romance, por exemplo, como Dom Casmurro, ou um conto como “Uns braços”, não se revelam, inteiros, na primeira nem na segunda nem na terceira leituras. Creio mesmo que, a cada leitura que se faça ao longo do tempo, algo de novo se descobre. São textos tão abertos em sua significação, que novas e múltiplas leituras nunca os preencherão, restando sempre um halo de mistério a ser saboreado.
O ensaísta, que também é poeta e memorialista, é o gaúcho Augusto Meyer. Algumas de suas páginas de crítica, sobretudo as reunidas em À sombra da estante, A chave e a máscara e A forma secreta, demonstram a densidade e a argúcia analíticas de um leitor criativo, presa da beleza estética e da autonomia da linguagem literária.
Augusto dos Anjos é o nosso poeta. O Eu é como a Bíblia: passa-se a vida inteira lendo-se e relendo-se suas páginas. Cada verso é um versículo; cada estrofe, uma imagem sagrada; cada poema, um Eclesiastes, um Apocalipse. Visionário, profético, sobretudo monumento estético, objeto material e artístico, coisa mental e linguagem expressiva. Relê-lo é fundamental!
Hildeberto Barbosa Filho-Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]
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