No ano passado, o Brasil registrou 80.573 processos de divórcio, de acordo com dados do Colégio Notarial, que representa os cartórios do País. Esse número foi o maior da série histórica, iniciada em 2007, com um aumento de 4% em relação a 2020.
Na maioria das vezes, crianças e jovens são os que mais sofrem. Além dessa situação delicada em que se encontram, eles não têm oportunidades para expressarem o que sentem e desejam. Contudo, não é só nesses casos que não há espaço para comunicação – no cotidiano, o mesmo problema acontece. E quando finalmente conseguem externalizar o que pensam, sofrem represálias.
É sobre esse assunto que se debruça a pesquisadora Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci, que desenvolve pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP o projeto de pós-doutorado Comunicação não violenta e novas narrativas de direito à voz para crianças e adolescentes: uma análise à luz da educação para paz na política pública de oficinas judiciais de parentalidade no Brasil.
A pós-doutoranda aponta que crianças e adolescentes possuem um largo amparo legal. Já em 1959, por exemplo, a Organização das Nações Unidas (ONU) publica a Declaração Universal dos Direitos das Crianças. No Brasil, a Constituição de 1988, em seu artigo 227, considera pela primeira vez jovens como sujeitos de direito e não mais como objetos de direito. Ou seja, a partir deste momento eles são compreendidos como cidadãos protegidos pela lei e com a prerrogativa de exercer direitos próprios, independentes dos exercidos por seus pais ou tutores.
Em 1990, é sancionada uma importante lei, que ficou conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente. Nela, ficou estabelecido que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, […] a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”. Mais tarde, o Estatuto da Juventude e o Marco Legal da Primeira Infância viriam completar esse conjunto de legislações.
Ana Claudia reconhece que a legislação existente ainda não contempla todas as necessidades, apesar de já garantir muitos direitos. Mas ainda é um desafio fazer essas garantias valerem fora do papel: “Falta a compreensão cultural de que a criança já é um sujeito de direito. Elas têm que ser protegidas como os adultos. Na prática, ainda se vê uma objetificação das crianças”. E isso faz com que elas não usufruam de seus direitos à comunicação e à participação.
Existe uma subordinação das crianças e adolescentes não apenas em relação às figuras paternas, mas aos adultos de modo geral. Os jovens não têm chances de se comunicar livremente, como pessoas que possuem as capacidades necessárias para expressar suas ideias. Para se fazerem ouvir, as crianças precisam da intermediação de uma pessoa adulta. Sem isso, e muitas vezes mesmo com esse meio de campo, elas não são levadas a sério.
“Existe aquela noção do que a criança vai ser quando crescer. A criança já é. Ela tem que ser respeitada agora. Não é porque ela tem menos idade que é menos ser humano que nós.”
É devido a esse cenário que a pesquisadora enfatiza a diferença entre o direito à comunicação e o direito à voz. O primeiro abrange uma compreensão global da fala de crianças e jovens, que permita que sejam entendidos pelos adultos e vice-versa. Já o direito à voz, decorrente de uma comunicação adequada e compreensiva, refere-se à criação de um espaço no qual a criança pode falar por si mesma, ser ouvida e ter seus direitos respeitados.
Casos de maus-tratos e violência contra crianças e adolescentes vêm crescendo nos últimos anos, segundo dados do Unicef e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mas se uma criança apanha ou é estuprada, por exemplo, ela não conseguirá revelar nada sobre o trauma que sofreu (mesmo que saiba que foi vítima de um crime) caso não encontre um contexto favorável para falar. E o silêncio dos jovens é algo que com frequência não é compreendido. Dar voz significa garantir às crianças um ambiente seguro.
Além disso, incentivar a participação direta das crianças hoje é formar um povo preparado para opinar e debater no futuro, avalia a pós-doutoranda. “É uma questão de cidadania, pois quando comunicamos para as crianças e adolescentes os seus direitos, eles conseguem se enxergar como cidadãos ativos com voz e protagonismo”, ressalta Ana Claudia.
Uma das bases teóricas do pós-doutorado é a pesquisadora alemã Hannah Arendt, uma das mais influentes pensadoras políticas do século 20. Segundo ela, uma pessoa necessita conhecer os seus direitos para poder exercitá-los, bem como para poder colocar em prática uma ação política. É por isso que Ana Claudia afirma que uma criança sem voz torna-se uma criança invisível. Sem oportunidades para ser escutada, ela acaba ficando refém das vontades dos adultos, que não são as mesmas de um jovem.
Uma iniciativa citada por Ana Claudia que busca o exercício desse direito é a da Câmara Mirim. O projeto faz parte do Plenarinho, uma plataforma da Câmara dos Deputados que busca aproximar as crianças do mundo do Poder Legislativo por meio de uma abordagem lúdica e didática. A Câmara Mirim leva estudantes do 5º ao 9º ano do Ensino Fundamental a elaborar um projeto de lei, que pode chegar a ser defendido no Plenário. Isso permite que as crianças se sintam mais representadas, além de incentivar uma postura cidadã e ativa na sociedade.
Outra ação importante, que se tornou um dos enfoques da pesquisa, são as chamadas oficinas de parentalidade. A iniciativa surgiu na 2ª Vara da Família e Sucessões, na cidade de São Vicente, com a juíza Vanessa Aufiero da Rocha. As oficinas acontecem quando um processo de divórcio envolve uma criança ou adolescente. São dadas palestras diferenciadas para pais e filhos, de modo a promover uma comunicação mais respeitosa e justa entre eles.
Durante as oficinas, é aplicada a teoria da comunicação não violenta, formulada pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg. De acordo com Ana Claudia, o principal pilar dessa teoria é o fato de que ela não nega o desacordo. “Para que você resolva um conflito, o diálogo se faz necessário. A mensagem dessa ideia não é se afastar do conflito, mas refletir sobre como é possível lidar com ele”, diz Ana Claudia.
Com a aplicação da comunicação não violenta, o Poder Judiciário deixa de agir em função apenas do que estava previsto na lei, para adotar uma postura educativa. Nas palestras, é mostrado que o ambiente familiar não precisa ser de conflito, mas de aproximação.
“Mesmo com um conflito, é possível chegar a um denominador comum. É preciso usar uma comunicação que seja para aproximar, aconchegar, para transmitir direitos e pacificar relações. É sobre como lidar com o ex-cônjuge com um filho nesse caminho.”
A medida deu tão certo na cidade da Baixada Santista que acabou se tornando uma política pública do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Hoje, é possível ter acesso às oficinas mesmo sem a instauração de um processo. Elas são executadas em um único encontro de quatro horas, com explanações de expositores, debates e atividades lúdicas. O objetivo do programa é “fornecer estratégias para que os filhos consigam superar as dificuldades inerentes à fase de reorganização familiar e se adaptar à nova realidade”.
A pesquisa empreendida por Ana Claudia a fez perceber como é crucial para o desenvolvimento da sociedade a participação ativa das crianças e adolescentes. Ela também notou que os ideais da comunicação não violenta podem auxiliar nas relações humanas de forma geral: “A comunicação não violenta tem que ser uma base para muitas coisas na vida, não só em projetos do Judiciário, mas na imprensa, na educação, no Legislativo, no Executivo. Acho que a comunicação não violenta deveria ser um mote para a gente viver”.
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